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Uma leitura dos fatos e dos 'fakes' à Luz do Mistério Celebrado
Em cada Eucaristia somos desafiados a nos associar a Jesus e repetirmos sua experiência. (Reprodução/ Pixabay)
Por Márcio Pimentel*
Eleição após eleição a conversa é a mesma: “acho que não deveríamos misturar religião com política”. Por mais que se assevere com palavras pontifícias que a “política é a forma sublime da caridade”, o incômodo é notório quando, na assembleia dos cristãos e cristãs – a Missa – o homiliasta envereda pelo assunto. Bocas torcidas e olhos baixos são facilmente detectados. Na minha comunidade, reunidos no fim do semestre passado, a maioria compreendia a importância do assunto, mas o incômodo era tal que se sugeria mudar o nome: “não, política não... chamemos de cidadania... etc.”
Neste tempo altamente desolador, um momento no qual vários analistas de plantão sugerem como decisivo, acredito que não há como fugir do assunto: política. É um momento decisivo porque estamos de fato numa encruzilhada. O caminho que a nossa digital indicar no próximo dia 7 de outubro, pode condenar o país a um regime no qual a decrepitude humana definitivamente se instalará ou nos oportunizará o ‘respiro’ necessário para por as coisas no rumo, o que exigirá uma revisão séria e cuidadosa de nossas opções nos últimos vinte anos.
Começando já com este processo, gosto sempre de lembrar a mim mesmo de quem sou seguidor. Respondo, repetindo que sou discípulo – ao menos me esforço – de um ser humano nascido e criado na periferia, portador de uma fé religiosa rotulada por seus contemporâneos como, no mínimo, heterodoxa e duvidosa. Um homem que se atrevia a desafiar a hermenêutica oficial, que não definia sua conduta em relação aos outros pelos estigmas que a sociedade lhes infligia. Um Mestre que apostava na inteligência de seu auditório, não só falava, mas fazia e, o mais importante, por tudo isso foi perseguido pela religião e pelo Estado, tornou-se réu de um julgamento ‘fake’, foi condenado sem provas, torturado e executado como criminoso hediondo. Do ponto de vista histórico, é este o caso. Sim, a teologia soube ler o sentido que o próprio ‘delinquente’ – assim o status quo o compreendia – atribuiu a todos estes fatos e os designou como oblação, entrega de si, solidariedade máxima, redenção, sacrifício. Mas não se pode negar a ‘loucura da cruz’ conforme registra o Apóstolo em sua teologia.
Ser discípulo de um ser humano deste porte e – sobretudo reconhecê-lo como Verbo de Deus - exige de nós o assumir de posturas e o rechaço de outras. Lendo a carta de Tiago nestes últimos domingos, isto deveria ficar muito claro. Nossa conduta é o indicador, não a causa, de que a salvação é operante em nós. A Liturgia existe para modelar tal ethos. O “fazei isto em memória de mim” que ressoa na boca da Igreja como obediência ao mandato de Jesus tem como finalidade vincular seus discípulos e discípulas ao seu perfil humano, seu jeito de ser pessoa – isso é que significa a santificação – porque, afirma a patrística e o magistério repete solenemente: “sua humanidade, unida a pessoa do Verbo, tornou-se instrumento (causal) de nossa salvação” (SC 5). Dito de outra forma, a Liturgia, em especial a Eucaristia, pela qual “atua a obra da nossa Salvação” (SC 2) é o espaço para que a práxis política de Jesus se faça carne.
Falar em política, tradicionalmente, é dizer do exercício responsável do cuidado com o outro, de estabelecer o espaço para uma convivência feliz. Para Aristóteles, a política é a ciência da felicidade humana que se alcança por uma determinada maneira de viver, de exercer as relações. Dando um salto, podemos dizer que para Jesus, a política seria exatamente a mesma coisa, ainda que seus pressupostos estejam estabelecidos numa perspectiva teológica: na sua relação com Deus a quem chama “Pai”. Para Jesus, os seres humanos são uma só família porque assim o é aos olhos de Deus. A Liturgia pós-conciliar soube distinguir este detalhe da ‘teoria’ (=olhar) política de Jesus, quando criativamente formulou as novas orações eucarísticas: “Por vosso Filho, reunis em uma só família os homens e as mulheres...”; “com a vida e com a palavra anunciou ao mundo que sois Pai e cuidai de todos como filhos e filhas” (Oração Eucarística VI C e D).
Jesus arriscou tudo por isso. Melhor, Jesus arriscou-se porque amou. E em cada Eucaristia somos desafiados a nos associar a Ele e repetirmos sua experiência. Por isso, tantas vezes cantamos a fórmula belíssima da comunidade ecumênica Taizé: “Deus é amor, arrisquemos viver por amor.” A cruz de Jesus – hoje, como ontem - é simultaneamente a denúncia de que muitos de nós não quer correr este risco e a proclamação de que é a via necessária para a felicidade. Mas vejam, a cruz não é sinônimo de sofrimento, dor e morte – apenas. Ela foi transfigurada pela vida de Jesus. Não há cruz de Jesus sem ministério de Jesus. É sua condição de Messias-Servo e não militarizado que nossas últimas duas celebrações dominicais recordaram, que qualificam a cruz e a transmutam em ‘signo’.
Quando vemos as coisas por este ângulo, é quase insuportável perceber e conviver com pessoas que, qual Pedro antes da Páscoa, confessam uma coisa com os lábios, mas se atrevem a negar com as mãos. São os “satanases” que moram ao lado, que trocam beijos e apertos de mão e aos quais tantas vezes chamamos amigos, amigas. O desafio que Jesus lança é de nos apartarmos de sua lógica, sim, porque não pensam como Deus, mas como seres humanos pondo sua confiança na própria razão. Entretanto, nos insta a oferecermos-lhes a oportunidade de – no convívio comunitário – reorientar a vida e opções ao Evangelho.
Projetando um pouco o nosso contexto na época de Jesus, atento ao risco de qualquer anacronismo, penso que Jesus, em seu tempo, foi desafiado para publicasse seu o que seria equivalente ao nosso contemporâneo “#elenão”. E, como Preta Gil disse recentemente de si mesma, o Senhor não o fez em um momento pontual de sua existência e muitos menos com uma “hastag” de seu tempo: não há registro de uma só linha escrita por ele (há até mesmo quem teorize sobre seu semi-analfabetismo). O que Jesus escreveu, o fez na carne: na sua, pelo culto existencial que prestou ao Pai durante toda sua trajetória na Palestina e na nossa própria, pelo culto ritual com o qual nos vinculou a ele, de modo que vivêssemos segundo seu Espírito, o mesmo que o animava. Por essa razão, nós que comungamos de seu altar jamais poderíamos fazê-lo esquecendo o motivo fundacional deste gesto. E neste sentido, a oração depois da comunhão do XXIV Domingo do Tempo Comum nos revela sem rodeios: “que a ação da vossa Eucaristia penetre todo o nosso ser, para que não sejamos movidos pelos nossos impulsos, mas pela graça do vosso sacramento.” A tradução portuguesa está muito boa, mas o original é mais incisivo ainda. Eu traduziria por: “não nos deixeis mover segundo nossa mentalidade ou pelo senso que temos das coisas”.
Dito isso, é preciso nos perguntar muito seriamente se a experiência eucarística de nossas assembleias dominicais nos estão conduzindo a esta maneira de enxergar a vida, de viver e conviver. Sinceramente, seja no convívio comunitário, seja na virtualidade das redes, o que se faz notar parece o exato oposto. Sem fechar os olhos aos que buscam com sinceridade uma vida de acordo com sua fé, é desconcertante a grosseria, o autoritarismo, a tosquice com a qual lemos e interpretamos o livro da vida e a partir das quais nos relacionamos. Perguntemo-nos, nós que participamos da Ceia do Senhor tão frequentemente, se tem sido a graça do Sacramento – isto é, Jesus mesmo, seu modo de pensar, sentir e agir – a estabelecer nossa humanidade, nosso jeito de ser pessoa, de ser gente.
Nossa vocação segundo o Novo Testamento é sermos, nós mesmos, “Boa Notícia” uns para os outros, sobretudo para os mais pobres e esquecidos deste mundo. Mas não é isso que parece mover muitos membros da Igreja – e isso se aplica a qualquer fiel seja ele um membro da ‘diretoria’ ou não. Quando, como cristão, me dou conta de irmãos e irmãs desfilando acusações, passando a frente notícias sem o menor cabimento, fabricando verdades, manipulando registros para alcançar o fim que lhes parece o melhor para todos (porque em geral lhes deixa bem e não mexe com seu status), minhas entranhas se contorcem. Sobretudo quando constato que um amigo, um irmão, um companheiro (que come o mesmo pão comigo) apoia alguém que defenda métodos clara e evidentemente contrários ao Evangelho (como a tortura, o armamento da população, o desrespeito à condição sexual e de classe do outro, etc) e ainda o faça sob o pretexto de se considerar uma ‘pessoa de bem’ e de desejar o ‘novo’. Irmãos e irmãs que – infelizmente – não se deram conta que a caridade que apregoam deve chegar na ‘ponta do dedo’ no próximo dia 7 de outubro, para usar a expressão de um colega e amigo liturgista Pe. Danilo César.
Penso que seja esta a hora de uma averiguação cuidadosa de nossa conduta. Para nossa tristeza e infelicidade de muitos que precisam de nosso testemunho amoroso, solícito e cheio de paz, talvez descubramos que não só estamos produzindo ou transmitindo abundantemente “fake News”, mas nós mesmos nos estamos tornando imagem e semelhança delas: ‘cristãos-fake.’ Mas não posso esquecer que muitas destas pessoas são amigos, irmãos, camaradas. Participam como iguais da mesa que ponho em nome daquele que sigo. Cabe-me então, apenas, aquilo que o Papa Francisco diz que deve mover o cristão: ao lado da fé e do amor, a esperança. Não o otimismo, pois este já se foi. A esperança no ser humano – todo e qualquer um – como um projeto de Deus, pois foi concebido como cópia e semelhança de seu Filho.
*Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, especialista em Liturgia (PUC-SP) e Música Ritual (FACCAMP), licenciado em Música (UEMG), Mestrando em Teologia (FAJE-CAPES). Atualmente é membro do Secretariado Arquidiocesano de Liturgia e da Rede Celebra de Animação Litúrgica. Assessora encontros sobre temas de Teologia e Liturgia.
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