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Para Obama, a igualdade desejada por Deus está vinculada aos movimentos e às lutas sociais com este fim.
O presidente do Supremo Tribunal John Roberts administra o juramento de posse ao presidente Barack Obama durante a cerimônia inaugural de posse no Capitólio dos EUA em Washington, D.C., 21 de janeiro de 2013. (Foto oficial da Casa Branca por Sonya N. Hebe)
Por Luís Corrêa Lima*
Nos tempos efervescentes em que vivemos, de polarizações e incertezas, vale a pena olhar para a história da conquista de direitos de LGBT, negros e mulheres. Esta conquista se deu em nações com população majoritariamente cristã, católica ou protestante, que também foram profundamente transformadas pela cultura moderna. Os agentes deste processo não raramente têm motivações seculares, expressas de modo não religioso. Mas às vezes estas motivações estão bastante vinculadas à tradição judaico-cristã ou à fé professada e vivida, apesar dos protestos de muitos fiéis e de líderes cristãos.
Uma expressão emblemática disto é a posse do segundo mandato do presidente norte-americano Barack Obama, ocorrida em 2013. Ele foi eleito pela maioria de protestantes, católicos e judeus que foi às urnas. E fez seu juramento presidencial com a mão sobre as Bíblias que pertenceram a Abraham Lincoln e a Martin Luther King Jr. O seu discurso de posse repercutiu mundialmente com a manchete: “igualdade para gays e imigrantes”. Obama citou a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, onde afirma-se como verdade evidente que todos os homens são criados iguais, e lhes são conferidos pelo Criador direitos inalienáveis, entre os quais o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. É preciso ser igual não só aos olhos de Deus, mas aos olhos dos homens, prossegue o presidente. E esta igualdade é uma estrela que guia o povo no presente, como guiou os seus antepassados em Seneca Falls, Selma e Stonewall. A tarefa desta geração não está completa, diz ele, até que “nossos irmãos e irmãs gays” sejam tratados como os outros perante a lei 1.
Os lugares por ele mencionados são ícones históricos de lutas sociais. Seneca Falls, no estado de Nova Iorque, é o local da primeira convenção norte-americana em favor da emancipação feminina, em 1848, reivindicando igualdade de direitos entre homem e mulher. Selma é a cidade do Alabama de onde partiram as marchas pelos direitos civis dos negros, em 1965, lideradas por Luther King. E Stonewall é o bar da cidade de Nova Iorque onde eclodiu, em 1969, uma sequência de protestos contra batidas policiais e humilhações impostas a gays e transexuais. Estes protestos massivos e públicos tiveram grande repercussão na mídia. Um ano depois, em memória destes acontecimentos, criou-se a Parada Gay que aos poucos se espalhou pelo mundo. Hoje tem o nome de Parada LGBT e reúne imensas multidões. Para Obama, a igualdade desejada por Deus está vinculada aos movimentos e às lutas sociais com este fim.
A escolha das Bíblias de Lincoln e Luther King não foi por acaso. Ambos lutaram até a morte pela liberdade e pela emancipação dos negros em seu país. No livro sagrado dos cristãos, eles encontraram inspiração e alento para a sua luta. Isto não foi simples. A Bíblia tem vários trechos que mencionam a escravidão e a segregação, e que historicamente foram utilizados para justificá-las. Lincoln e Luther King não ficaram reféns desta leitura ao pé da letra, fundamentalista, que era uma arma ideológica de seus adversários. O livro sagrado tem também outros trechos em favor da submissão da mulher ao homem, e contrários às relações entre pessoas do mesmo sexo. Ainda hoje, estes trechos são utilizados por alguns cristãos para subalternizar as mulheres e execrar os gays. Obama também não se submeteu a esta leitura. Após jurar sobre as Bíblias e se referir ao Deus Criador, ele defendeu com eloquência os negros, as mulheres, os gays, os imigrantes, os pobres, as crianças e a preservação do Planeta.
Os Estados Unidos são um Estado laico, não confessional, no qual há, entretanto, uma notável presença da religião na vida pública. Além do juramento presidencial sobre a Bíblia, o nome de Deus está na moeda e no juramento à bandeira feito nas escolas. Na França, por sua vez, a laicidade exclui esta presença até o ponto de proibir o véu de mulheres muçulmanas na escola pública. Já no Brasil, a laicidade estatal se assemelha à dos Estados Unidos. O nome de Deus está na moeda e o crucifixo, em muitos prédios públicos. Cabe perguntar qual é a imagem ou a compreensão de Deus veiculada no uso público do Seu nome. De que Deus estamos falando? O apóstolo Tiago diz que a fé em Jesus Cristo glorificado não deve admitir discriminação de pessoas, dando como exemplo a ser evitado o tratamento desigual a ricos e pobres nas assembleias de culto 2. O combate à discriminação é critério decisivo para o uso correto do nome de Deus.
No preâmbulo da Constituição Federal brasileira, menciona-se a “proteção de Deus” para se instituir um Estado democrático, visando assegurar liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, comprometida com a solução pacífica de controvérsias 3. Sem dúvida, a fé em Deus deve fomentar a fraternidade, respeitar o pluralismo inerente à liberdade, e combater os preconceitos decorrentes do obscurantismo. Esta Constituição é o resultado de movimentos e lutas sociais pela redemocratização e pelos direitos humanos.
O Brasil acaba de eleger um presidente que inclui em seu lema: Deus acima de todos. Proclamar a soberania de Deus implica em combater a violência física e verbal contra os LGBT, o racismo e o extermínio de jovens negros e pobres, o espancamento, o estupro e o assassinato de mulheres. Não se pode desqualificar toda esta opressão como “coitadismo”, pois isto é usar o nome de Deus indevidamente. Não faltam exemplos do seu uso correto, bem como das grandes causas e lutas que o engrandecem.
[1]Discurso de Posse do Presidente Barack Obama, disponível aqui.
[2] Tiago 2,1-13.
[3] Disponível aqui.
*Luís Corrêa Lima é sacerdote jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Trabalha com pesquisa sobre diversidade sexual e de gênero, e no acompanhamento espiritual de pessoas LGBT.
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