sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Deus conosco: na fé católica, a encarnação não é uma abstração

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Se a paixão, a morte e a ressurreição do Senhor relativizam nossa humanidade à sua divindade, o Natal celebra a relativização de sua divindade por nossa humanidade.
"A Natividade Com Santos" (cerca de 1514) pelo artista italiano Ridolfo Ghirlandaio (Metropolitan Museum of Art/ The Friedsam Collection)
Por Michael Sean Winters*

Dos grandes fatos soteriológicos da fé cristã – a Criação, a Queda, a Encarnação, a Paixão, a Morte, a Ressurreição, e o Eschaton - a Encarnação é o mais católico. O Natal é o dia em que nos concentramos em nossa celebração da encarnação. A Encarnação também é, eu acredito, o evento revelado que o Papa Francisco mais carrega e partilha em seu ministério.

O que isto significa? Talvez possamos abordar tangencialmente, por assim dizer. Olhando as heresias mais de perto, entre as maiores de todos os tempos, o pelagianismo nega de maneira mais fortemente o fato da Queda, pensando que nós humanos podemos ganhar o caminho para o céu, que não precisamos de um salvador. Falando em termos mais atuais, você até pode dizer que o capitalismo industrial moderno é uma heresia material, embora não formal, na medida em que nega a bondade da Criação. E, por outro lado, temos o gnosticismo, que ataca nossa crença na bondade da Criação e na Encarnação.

Nossos irmãos e irmãs nas grandes igrejas da Reforma também tenderam a subestimar os efeitos da Encarnação comparados a nós católicos. As razões pelas quais os calvinistas que fundaram a Nova Inglaterra proibiram a celebração do Natal são várias e diversas, mas essas razões foram apenas decisivas porque não tiveram que superar nossa confiança católica na Encarnação e seus efeitos. Para eles, era a distância entre o divino e o humano que contava.

Deus conosco é a consigna que celebramos no natal. Como católicos, dos mais instruídos aos mais simples, todos nós amamos a Encarnação e também a vivemos. Todos apreciamos a natureza tátil de nossas celebrações, a beleza de nossas igrejas que saúdam nossos olhos, os maravilhosos hinos que enchem nossos ouvidos, o cheiro do incenso e a chance de dar voz aos santos da antiguidade enquanto cantamos "Hosana no mais alto" e "Cordeiro de Deus, tende piedade de nós".

Veneramos os lugares onde Jesus e seus seguidores mais próximos, os santos, andaram na terra. Ajoelhamo-nos diante de relíquias porque acreditamos que o amor de Deus toma forma na carne. Sabemos que, por mais que pequemos, por mais ambíguas que sejam nossas decisões, por mais preguiçosas ou indisciplinadas que sejam nossas vontades, sabemos que Deus está conosco, Ele é o Emmanuel quando dizemos que a "Encarnação", não soa como uma abstração, mas que está presente na vida da igreja, e mostramos isso de inúmeras maneiras que não é uma abstração, que a Encarnação é parte de nossa realidade de fé vivida.

Nós, católicos, acreditamos que a natureza humana é mudada e edificada precisamente porque o nosso Deus escolheu usá-la. A natureza humana, você poderia dizer, foi a primeira "veste alegre1" do natal. Se a paixão, a morte e a ressurreição do Senhor relativizam nossa humanidade à sua divindade, o Natal celebra a relativização de sua divindade por nossa humanidade. É por causa desta relativização gêmea que Jesus foi capaz de derrubar os preceitos feitos pelo homem com tal determinação, cortar as incrustações culturais e chegar ao núcleo interior, proclamar um novo dia de amor, o cumprimento da visão do profeta Baruque sobre a humanidade. Ouvi no segundo domingo do Advento deste ano, quando "Deus está levando Israel em alegria/ pela luz de sua glória, /com sua justiça e misericórdia por companhia".

Olhamos ao redor do mundo e vemos que o nascimento de Jesus, seu ministério e ensino, sua paixão, morte e ressurreição, ainda não trouxeram "paz na terra para os homens de boa vontade", como os anjos anunciaram e cantamos no Gloria. Justiça e misericórdia ainda não estão em companhia em nosso mundo e, na verdade, temos dificuldade em perceber como podem ser reconciliadas. A igreja, o novo Israel, não está muito alegre nestes dias.

No entanto, o Papa Francisco ainda irradia alegria e, especificamente, alegria de Natal. Pense nas tensões que o pobre homem enfrenta. Todos nós discutimos o que deve ser feito sobre a crise dos abusos sexuais do clero, mas ele tem a responsabilidade de decidir o que fazer, e realmente tem que mudar a cultura que tornou a crise possível. Todos nos preocupamos com o destino do planeta, mas ele realmente tomou a iniciativa de fazer o que podia para concentrar a atenção do mundo na catástrofe ambiental que está se desdobrando ao nosso redor e para revelar a raiz mais profunda do problema, a raiz espiritual. Reclamamos, nós católicos, sobre a má pregação e o papel dos leigos e bispos que são medíocres ou piores e um milhão de outras questões, mas é o papa o encarregado de supervisionar o todo. No entanto, ele parece tão alegre.

O Santo Padre tem tantas e maravilhosas reviravoltas, mas a que eu mais gosto é o seu repetido lembrete, dirigido a todos nós, de que "Jesus ainda quer se tornar carne". No coração do ensinamento social do papa, no coração de sua crítica ao capitalismo, no centro de seus repetidos apelos para que a nossa igreja se torne uma igreja pobre para os pobres, existe a fé do Natal, a fé que Deus assumiu no homem a carne e, em seu corpo, que é a igreja, Ele ainda deseja se tomar carne. 

Antes dos editores dos hinários começarem a substituir a linguagem requintada e poética pelo palavreado moderno e banal, toda véspera de Natal cantávamos: "Eis que ele não abomina o ventre da Virgem". (Se você quiser ver como a Missa da Véspera de Natal deve começar, aqui está como eles cantam "Adeste Fidelis" na Abadia de Westminster).

É isso que celebramos no Natal: que o Salvador do mundo assumiu a carne humana real e ainda está tomando-a, sempre que nos permitimos ser um instrumento de sua palavra e vontade como Maria. Um abençoado tempo de natal para todos.
[1] A palavra usada no original é gay, pois significa alegre, contente, vistoso, feliz, divertido.


National Catholic Reporter - Tradução: Ramón Lara

*Michael Sean Winters escreve sobre a conexão entre religião e política para o National Catholic Reporter.

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