sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

O retorno do constantinismo

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Quando o cristianismo se inclina às manobras dos potentes.
Papa Francisco recebe Donald Trump no Vaticano, em maio de 2017.
Papa Francisco recebe Donald Trump no Vaticano, em maio de 2017. (Reuters/ L'Osservatore Romano)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*

A euforia de muitos católicos quando Donald Trump foi eleito, em 2017, foi épica, sobretudo porque sinalizou o início de uma nova era no tocante às relações entre cristianismo e os governos. O presidente americano inaugurou uma nova fase do constantinismo cuja força, nos últimos tempos, também tem se refletido no Brasil, na Itália e em outras partes do mundo. É possível falar do retorno desse modelo, justamente porque, em todas essas realidades, o cristianismo é utilizado como baluarte em meio à tentativa de se instaurar uma espécie de “religião civil”, como no período dos fascismos - no plural, já que, neste caso, os especialistas definem o franquismo, o pinochetismo, a ditadura grega dos coronéis e as ditaduras da América do Sul em geral como sistemas oriundos desse modelo, mesmo que o Estado, como sabemos, tenha atuado de maneira diferente em cada território.

Obviamente, não estamos falando do retorno dos regimes totalitários enquanto estruturas de governo, e nem comparando tais conjunturas àquelas que se formam hoje, mas refletindo sobre o ressurgir de uma práxis levada a cabo por Benito Mussolini e Adolf Hitler em relação à instrumentalização do cristianismo para fins políticos e a difusão de um espírito bélico-militarista promotor de uma suposta ordem e de um suposto progresso. Da mesma forma, não podemos deixar de citar o comunismo stalinista que, mesmo professando o ateísmo, também conseguiu sacralizar sua ideologia com êxito, empossando-se de rituais muito semelhantes aos praticados pela ortodoxia russa, como afirma o historiador italiano Emilio Gentile em seu livro O Cristianismo na época dos fascismos. Basta nos recordarmos das sirenes espalhadas pela cidade de Moscou que soavam no mesmo momento em que deveriam soar os sinos dos majestosos templos ortodoxos, os quais foram silenciados pelo regime em nome da instauração do ateísmo universal. 

O termo constantinismo, amplamente utilizado no meio eclesiástico, é atribuído a Constantino, o famoso imperador romano que transformou o cristianismo em uma religião lícita, em 313, através de um tratado de tolerância - não de um edito, como erroneamente se difunde - em resposta à promulgação do famoso edito de Galério, de 311, através do qual as perseguições contra os cristãos foram cessadas no Oriente. O constantinismo começa a partir daí: quando os escritores cristãos transformam Constantino no promotor da Pax Universalis Ecclesiae - a paz da Igreja universal - sendo que, dois anos antes, a almejada paz já havia sido alcançada em grande parte do império. No período, vale salientar, predominava a tetrarquia, uma forma de governo que consiste na divisão do território em quatro partes coordenadas por dois césares e dois augustos. Após uma sequência de batalhas, traições, assassinatos e manobras políticas, Constantino conseguiu o que queria, tornando-se o único líder do império romano no ano 324. Alguns anos depois, em 337, Eusébio de Cesaréia escreve a Vita Costantini - Vida de Constantino, um escrito biográfico que promoveu as qualidades do imperador e registrou, pela primeira vez, a contestada visão de Constantino, até então desconhecida pela maioria dos contemporâneos. Na época em que foi escrita essa obra, os cristãos não somente gozavam da liberdade de culto, mas assumiam cargos importantes no império, motivo que, de acordo com especialistas, levou o escritor a destacar a heroicidade do imperador como forma de gratidão pelos feitos em favor do cristianismo. Há, hoje, um fenômeno parecido com esse que acabamos de relatar?

De acordo com historiador francês Marc Ferro, instrumentalizar o passado é um meio eficaz para interferir sobre o presente. De repente, os “cânones desse passado”, assumidos pelas cartilhas dos demagogos do presente, convencem as massas de que cristianismo e poder não sejam antagônicos, mas uma união querida pela “providência divina”. Tal interpretação se observa em todas as fases da história da Igreja. Não é novidade para ninguém, por exemplo, que alguns cardeais da diplomacia vaticana, nos anos 40, interpretaram a tomada do poder de Mussolini como uma intervenção divina, sobretudo após ele ter concedido à Igreja Católica o monopólio do ensino religioso nas escolas em plena ascensão do fascismo, visando justamente o apoio do clero.

 Falemos do Papa Francisco. Nunca um pontífice foi tão perseguido por quem se diz “fiel seguidor da doutrina”. Mas qual doutrina? Uma que se vende às manipulações dos potentes? Uma que considera pautas como imigração e a não violência - temas tratados amplamente pelos papas da atualidade - como “temas do papa comunista”? Muitos cristãos que não só sustentam, como promovem as distorções difundidas por esses líderes, não se dão conta que, muitas delas, contradizem a fé que dizem professar. De repente, milhares de pessoas se deixam levar por uma nova onda de messianismo - após a Revolução francesa e os totalitarismos -  que, mais uma vez, se empossa do sentimento religioso para atingir objetivos que de cristãos não têm nada.

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.

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