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Após recentes descobertas, se desfazem alguns mitos sobre o histórico processo de Galileu Galilei.
Galileo Galilei - pintura de Justus Sustermans (Reprodução/ Wikimedia)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*
Galileu Galilei, que foi responsável por uma das maiores revoluções científicas da história, voltou a ser matéria de debates, no ano passado, após a descoberta de uma carta de sua autoria, conservada nos arquivos da Royal Society, em Londres. Quem a encontrou foi o pesquisador Salvatore Ricciardo, da Universidade de Bérgamo, que fica no norte da Itália. Tido como desaparecido por grande parte dos historiadores, o manuscrito, achado e identificado por Ricciardo, mostra como Galileu tentou maquiar suas ideias para evitar um embate teológico com a Santa Inquisição.
A novidade, que chamou a atenção da imprensa mundial em 2018, trouxe outras constatações a respeito da censura imposta ao famoso físico, astrônomo e matemático, em 1633. Ao contrário do que aprendemos em nossas cartilhas de história, a razão da sua condenação teria sido “mais teológica que científica”. E quem já havia adiantado isso foi o historiador italiano Pietro Redondi, autor do livro Galileo eretico - Galileu, o herege. Em meados de 1983, Redondi foi o primeiro pesquisador a ter contato com um documento que continha uma denúncia anônima contra o livro Il Saggiatore, publicado por Galilei em 1623, 10 anos antes de ser indagado pelo Santo Ofício. O documento, chamado de G3 - título atribuído por causa da abreviatura que aparece no alto do manuscrito -, claramente demonstra que o cientista do século XVII foi acusado de sustentar um atomismo que, na visão da época, era incompatível com a doutrina católica da Eucaristia, fundamentada, como sabemos, no conceito de transubstanciação: ou seja, algo infinitamente mais grave que a teoria em relação ao movimento da terra.
Para confirmar essa interpretação, outro documento, intitulado EE 291, descoberto em 1999 no arquivo da Congregação para a Doutrina da fé - ex-Santo Ofício -, traz uma espécie de parecer doutrinal a respeito da teoria sobre a matéria que, na interpretação dos teólogos contrários às reflexões de Galileu, se contraporia ao sacramento da Eucaristia.
Na atualidade, os historiadores refletem sobre a possibilidade de que os amigos de Galilei ligados à Cúria Romana poderiam ter feito uma espécie de “vista grossa” para evitar a condenação máxima do astrônomo por heresia. É tanto que, em 1633, Papa Urbano VIII, através da Inquisição Romana, o condenou “somente” por causa do heliocentrismo, nada mais.
Os mitos sobre a aplicação da pena
Sabemos o quanto é difícil dissociar a Inquisição da fogueira ou da tortura, não é mesmo? Porém, no caso de Galileu, nem se cogitou a possibilidade da aplicação de tais penas. Na verdade, ele chegou a receber certas “mordomias” no tocante ao pagamento das mesmas. Primeiramente, ele viveu em uma espécie de prisão domiciliar na casa do arcebispo de Siena (Itália), Ascanio Piccolomini, seu grande amigo e admirador. Logo depois, Galileu foi autorizado a transferir-se para sua casa, localizada nos arredores de Florença. Ao contrário do que se pensa, ele jamais sofreu maus tratos e nem sequer dormiu em um cárcere, apesar das restrições impostas em relação à difusão do seu pensamento: muito avançado para o teocentrismo da época.
Ler a história sem anacronismos
O acesso às fontes - que, no caso de Galileu, são inúmeras e ainda despertam um enorme interesse do ponto de vista acadêmico -, permite que a vida desse gênio da era moderna seja vista de uma maneira mais ampla. Com o advento do positivismo histórico de um lado e o restrito acesso aos Arquivos secretos do Vaticano - os quais só foram abertos em 1881, a pedido de Leão XIII -, por muito tempo o caso Galilei foi tratado sem levar em consideração os vários pormenores do processo. Como é impossível chegar a uma objetividade histórica, uma vez que as próprias fontes escritas representam um recorte de uma verdade que jamais será alcançada na totalidade, cabe a nós o esforço de interpretar, da melhor maneira possível, a sucessão de fatos que compõem a trajetória de pessoas e instituições, sem nos apropriarmos delas para satisfazer a interesses do presente: e é esse o maior desafio.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.
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