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A ascensão da IA e da robótica levanta questões fundamentais sobre a natureza da pessoa humana, assim o explica o filósofo e membro da Academia Pontifícia para a Vida.
A robótica levanta importantes questões éticas, incluindo a maneira como a crescente presença de operadores robóticos atende às necessidades humanas. (Pixabay)
Por John Haldane*
Recentemente refleti sobre aspectos da forma e da identidade humana, pois estas ideias eram o foco de uma exposição na Galeria Nacional dos artistas renascentistas Bellini e Mantegna e de geneticistas contemporâneos - o último à luz do anúncio de que um cientista chinês, He Jiankui usara a edição genética para alterar o DNA de vários embriões que levaram ao nascimento de meninas gêmeas.
Escrevi que a manipulação de genes pode ter efeitos imprevisíveis, e relatórios subsequentes testemunham isso de maneiras inesperadas. Um efeito colateral do esforço de He Jiankui para tornar as meninas imunes ao HIV é que elas podem ter uma função cerebral melhorada, levando a maiores poderes de cognição e memória. He Jiankui foi demitido de seu cargo na universidade e pode enfrentar acusações criminais de suborno e corrupção. Sua iniciativa de melhorar a vida pode revelar-se seriamente como uma diminuição da vida para ele.
Com essa ironia não resolvida, volto à maneira como artistas e cientistas exploram o que significa ser humano. Uma caminhada de dez minutos da National Gallery leva você à Royal Academy em Piccadilly, onde desenhos de Michelangelo estão sendo exibidos ao lado de vídeos de Bill Viola de corpos humanos geralmente nus sendo encharcados com água, mergulhando ou caindo nela, além de cenas de nascimento morte e autoexame físico. Além da diversidade de interesse do espectador, há outro contraste, o da percepção.
Minha própria experiência, e imagino que de muitas outras, foi de duas exposições paralelas, exigindo dois tipos muito diferentes de atitude e atenção, como se mudasse do teatro para a televisão ou de um concerto para uma gravação. E por mais postura ou gesto que Michelangelo possa transmitir, dada a natureza de seu meio, estará sempre capturando ou imaginando momentos, enquanto Viola está usando câmeras de vídeo de alta definição para gravar e manipular processos.
O que acontece em ambos os casos, no entanto, é o surgimento do poder da atenção concentrada ao corpo humano, desenhada ou filmada, para induzir uma sensação de humanidade. Isso é intrigante, e resolver o enigma oferece insights importantes.
Como meras marcas ou manchas de luz e escuridão não apenas representam ou simulam, mas expressam a vida humana? No caso do cinema, a resposta parece óbvia: é apenas uma gravação dos fatos, seja uma obra elaborada; mas isso aprofunda o enigma do caso dos desenhos, que são inteiramente obra do artista. Aqui reside a resposta: um desenho do humano é duplamente expressivo, como o desenhista comunica sua humanidade através do giz, carvão ou lápis de cera na captura da humanidade do sujeito real ou imaginado, isso é expressado através da postura ou do gesto na obra. Este último, entretanto, é um caso secundário de expressão derivado da forma primária exemplificada pelos seres humanos reais, sejam eles os artistas ou seus modelos.
Wittgenstein, no trabalho publicado postumamente como Investigações Filosóficas, escreve que “apenas sobre um ser humano vivo e o que se parece (se comporta como) um ser humano vivo pode se dizer: tem sensações; vê; está cego; ouve; é surdo; é consciente ou inconsciente... Somente do que se comporta como um ser humano pode-se dizer que tem dores. Pois alguém diz isso desde um corpo, ou, se preferir, desde uma alma que algum corpo possui. E como pode um corpo ter uma alma?… Pense no reconhecimento de expressões faciais. Ou da descrição das expressões faciais”. Em suas diferentes maneiras, Michelangelo e Viola mostram em suas representações de corpos animados aspectos da alma humana, não apenas o fato de sua existência, mas sua natureza como uma forma distinta de vida.
Pensamentos de Michelangelo e Wittgenstein estavam em minha mente quando, uma semana depois de ver a exposição de Londres, atravessei o posto de controle da Guarda Suíça no Portão de petrino em direção ao New Synod Hall, onde o encontro de bispos se reuniu para discutir a questão do abuso sexual. Eles iniciaram a 25ª Assembleia Geral da Pontifícia Academia para a Vida. Em 2017, o Papa Francisco aprovou novos estatutos para a Academia e nomeou como seu novo presidente o arcebispo Vincenzo Paglia. Alguns membros proeminentes não foram reconduzidos e novos foram incluídos cuja postura pró-vida foi parcial.
Eu fui um dos sobreviventes da redefinição, levando alguns amigos a pensar se minha disposição ideológica mudara, tal é a atual atmosfera de suspeita.
Quiçá, em um esforço para evitar controvérsias sobre questões de início e final de vida, o tema da assembleia foi “A roboética: Humanos, Máquinas e Saúde”. Apresentaram temas de cientistas da computação, eticistas, engenheiros de robótica, tecnólogos e teólogos. Estes últimos geralmente nos lembram da ênfase cristã tradicional na dignidade da pessoa humana, mas sem uma análise e defesa rigorosas, a “dignidade humana” corre o risco de se tornar um clichê vazio.
Ele precisa receber um conteúdo mais determinado e o alcance de suas implicações mais explícitas.
A robótica levanta importantes questões éticas, incluindo a maneira como a crescente presença de operadores robóticos atende às necessidades humanas, não apenas materiais, mas pessoais e sociais. Algumas das questões que abordamos são semelhantes àquelas colocadas pela revolução industrial, principalmente a ameaça ao emprego. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sugeriu que, nos países desenvolvidos, 66 milhões de empregos poderiam extinguir-se por meio da automação robótica, com pessoas menos qualificadas e mais jovens sendo mais vulneráveis; mas também há espaço para novas formas de manufatura e trabalho de serviço a serem criadas envolvendo a “cooperação” entre humanos e robôs.
Também discutimos o potencial para a cirurgia robótica e outras atividades que exigem altos níveis de percepção, destreza e manipulação delicada. A inteligência artificial e a robótica permitem um monitoramento preciso das condições físicas, diagnóstico e tratamento de muitas doenças. Além dessas questões técnicas, há a intrigante possibilidade de assistência e até mesmo de acompanhamento sendo fornecido aos seres humanos, particularmente nos estágios iniciais e posteriores da vida.
Menores taxas de natalidade, aumento da longevidade e mudanças nos padrões de vida familiar e profissional estão levando a um declínio na educação e no cuidado dentro do lar e à pressão nas escolas, hospitais e serviços de assistência. Os robôs de Assistência Social (SARs) podem ser usados em figuras de brinquedos e animais para ajudar na educação da primeira infância, ou em humanoides amigáveis ou animais de estimação que assistem idosos. A Universidade de Yale e outras universidades já estão experimentando com o primeiro, os robôs de assistência social, e há uma literatura em rápido crescimento abordando o último, os humanoides. Isso, no entanto, representa o ponto onde as coisas começam a ficar turvas. Existem os problemas habituais relacionados à segurança e ao controle, mas também há um problema em substituir a máquina pela interação humana. Mesmo que bem-intencionado, o fornecimento de uma máquina não é substituto para cuidados pessoais e atenção. Mais fundamentalmente, está a questão de perder um sentido do humano como tal.
Aqui volto a Michelangelo e Viola. O que é ser humano e reconhecer e expressar a humanidade? Quando pressionados sobre o desenvolvimento de robôs humanoides e sua natureza, um dos oradores externos convidados respondeu: “O que é um ser humano? Nós não temos definição disso”. Porém, nós tentamos fazê-lo. Inspirado no primeiro grande trabalho sobre a natureza dos seres vivos, De Anima, de Aristóteles, escrito há quase dois mil anos e meio. Ele fala de três níveis de animação: vegetativo, sensível e racional; como a antiga Enciclopédia Católica afirma: "O homem é uma substância corpórea, viva, sensível e racional".
Esta definição da natureza humana insiste em nossa animalidade. Nós não somos mentes em corpos, mas em corpos conscientes. E a racionalidade é mais do que apenas lógica ou cognição; inclui emoção, imaginação e vontade. Algo a ser acrescentado à definição é que, enquanto seres corpóreos somos objetos no mundo, como seres que pensam, também somos sujeitos, com uma perspectiva humana específica sobre nós mesmos e nossos semelhantes; uma perspectiva marcada pelo uso de “eu”, “nós” e “você” em contraste com “ele”, “ela” ou “isso”.
Pensando mais adiante, podemos ver que temos dois tipos de conhecimento pessoal: um que vem da observação dos outros e de nós mesmos, e o outro que vem com o fato de ser um sujeito que sabe, direta e não observacionalmente, o que está pensando e fazendo. Embora estas sejam maneiras distintas de conhecer pessoas, elas se reúnem em reconhecimento mútuo quando olhamos nos olhos do outro e as vemos olhando para dentro de nós.
Sem dúvida, a Inteligência Artificial e a robótica continuarão acelerando seu desenvolvimento. Ao fazê-lo, será tentador substituir os seres humanos por humanoides e, como essas máquinas semelham as características de um corpo humano e recebem um rosto, haverá uma tendência cada vez maior para suspeitar que ganharam vida e consciência ou que nós também somos robôs. Ambas as conclusões seriam falsas e perigosas. Nossas vidas não são movimentos calculados e atividades predefinidas dentro de nossas cabeças, mas formas plenamente expressivas de humanidade intelectual, moral, estética e religiosa. É isso que, em suas diferentes maneiras, Michelangelo e Viola estudam e refletem para mostrar em suas propostas. Se você quer saber a diferença entre robôs e seres humanos, olhe para expressões de raiva e afeição, convicção e dúvida, esperança e desespero, amor e luxúria. Então olhe nos olhos de um robô e pergunte: Tem alguém aí? Quanto mais nos movemos para o mundo da ficção científica, mais precisamos olhar para a arte e a música para ver e ouvir a humanidade. Pode ter sido uma boa ideia fazermos uma das nossas sessões na Capela Sistina, olhando para o teto de Michelangelo e ouvindo Stabat Mater de Palestrina.
The Tablet / Tradução Rámon Lara
* John Haldane é professor de filosofia na Baylor University, no Texas, e na University of St Andrews.
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