sábado, 11 de maio de 2019

Dia das mães sem mãe


Este é o primeiro ano em que ela e eu passaremos a data em mundos diferentes.


'Mais fugindo que indo, querendo ficar, mas devorado por esse medo que agora é realidade'.
'Mais fugindo que indo, querendo ficar, mas devorado por esse medo que agora é realidade'. (Marco Lacerda)
Por Marco Lacerda*
Passo alguns dias na companhia dela e me dou conta de que seu mundo se tornou uma ilha cada vez menor, perdida num oceano onde a morte é anunciada não pela velhice, mas pelo esquecimento. Os filhos tinham sido a única justificação de sua existência, mas cresceram e se foram, deixando um buraco que cimento nenhum foi capaz de fechar.
Agora de volta, para o Dia das Mães, sinto-me acolhido, pequeno, protegido por um aconchego antigo. Compreendo num relance o que o poeta quis dizer quando escreveu que mãe devia durar para sempre e filho ser sempre pequeno feito grão de milho.
Lembro o relato médico sobre o dia em que nasci. Parto difícil. Só quebrando as duas clavículas conseguiram me arrancar lá de dentro. Agarrado às entranhas dela, eu fazia movimentos bruscos com o corpo e a cabeça, procurando o melhor ângulo para ser lançado no mundo. Não demorei a entender por que todos nascemos aos berros.
Por um momento sou tomado pelo medo de perdê-la, por não saber como será a vida sem ela. Não queria que ela ficasse doente ou envelhecesse ainda mais. Preferia que fosse desaparecendo aos poucos, transformando-se em lembrança, névoa de outros tempos, até apagar-se por completo na minha memória.
No dia da minha partida, depois da comemoração, tomamos o café da manhã sentados na pequena mesa da cozinha: bolo de fubá e pão de queijo, sabores que tinham sido meus na infância e dos quais havia esquecido depois que fui embora de casa. Cada mordida, cada gole me aperta o coração.
Fui embora sem realizar o desejo secreto que me levara de volta à casa dela: deitar-me em seu colo, como na infância, e perguntar por que ela me deixou partir na primeira vez em que deixei nossa casa. Só para ouvi-la dizer o que eu sempre soube: não, filho, eu nunca deixei. Depois, sempre deitado no colo dela, eu choraria até que se apagasse em mim toda memória e não restasse nenhum sinal, nenhuma lembrança de quem eu sou agora.
Deixo o apartamento no fim da tarde depois de me despedir dela no topo da escada, retirando devagar minhas mãos das palmas idosas das mãos dela. Mais fugindo que indo. Querendo ficar, mas devorado pelo medo de me apegar à sua presença  e de enfrentar o escuro de um futuro em que ela será apenas um retrato guardado na minha carteira.
Na calçada, enquanto me afasto do edifício, ouço a voz de Roberto Carlos transbordar suavemente pela janela. Era o mesmo disco arranhado que estivera num canto da sala desde o dia em que eu chegara. Era ela retomando sua vida sem importância, de só poder ser o que já fora na vida, enquanto a canção disputava espaço com o alarido dos canários nas gaiolas: “As flores do jardim da nossa casa morreram todas de saudade de você...”.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Dom Total

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