quarta-feira, 12 de junho de 2019

Chamados a construir pontes pelo papa, comecemos pela paróquias

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Para os católicos, o trabalho de solidariedade através das fronteiras começa na maioria das comunidades locais: a paróquia.
Dom Jorge Rodriguez exibe a carta apostólica oficial do papa Francisco, que o nomeou bispo auxiliar de Denver em 4 de novembro de 2016. Sua missa de ordenação multilíngue foi celebrada na Catedral Basílica da Imaculada Conceição, em Denver.
Dom Jorge Rodriguez exibe a carta apostólica oficial do papa Francisco, que o nomeou bispo auxiliar de Denver em 4 de novembro de 2016. Sua missa de ordenação multilíngue foi celebrada na Catedral Basílica da Imaculada Conceição, em Denver. (CNS photo/Andrew Wright, Denver Catholic).

Em 17 de fevereiro de 2016, durante sua visita ao México, Francisco orou e colocou flores em um memorial para os milhares de migrantes que morreram tentando chegar nos Estados Unidos. Sua imponente cruz, construída sobre uma plataforma de concreto com vista para a ponte internacional militarizada entre Ciudad Juárez e El Paso, no Texas, foi estampada com uma silhueta da sagrada família fugindo para o Egito.

A visita de Francisco à fronteira foi  emblemática e representou a força que guia o coração de seu pontificado: a opção constante pelas margens. Com a dor e em oração silenciosa em um espaço carregado da memória da injustiça e do sofrimento humano, Francisco convidou toda a Igreja a se comover lá também. Convidou, em outras palavras, a fazer uma opção preferencial pelas terras fronteiriças. Lá encontramos o Cristo crucificado e ressuscitado que seguimos.

Mas viver como vivemos em um momento histórico caracterizado por uma profunda polarização ideológica e uma fusão em larga escala do status legal com status moral, defender um compromisso teológico e pastoral com as fronteiras não é fácil. Em nossa imaginação nacional distorcida, o espectro da fronteira paira como um muro, retendo as ondas do outro indesejado, e como uma fronteira a ser conquistada: militar, econômica e culturalmente. As terras de fronteira se tornam pontos de inspeção, pontos finais, espaços de perigo e suspeita além dos quais nos atrevemos a nos aventurar apenas como missionários ou turistas - nunca como iguais, para que também não nos tornemos indesejáveis. São espaços onde, como Nazaré, somos formados para temê-los e acreditar que nada de bom pode vir. Tal formação torna a empatia impossível. Nesta imaginação nacional distorcida, a forma arquitetônica própria da fronteira não é a ponte, mas sim a cerca de ferro ou a parede de concreto.

Ensinados a temer as nossas fronteiras geográficas, absorvemos, por sua vez, o medo das fronteiras que existem dentro de nossas próprias comunidades - os espaços em nossas paróquias, bairros e escolas onde as raças, culturas e classes se encontram.

Tal medo deve ser rejeitado. A completa marginalidade de Jesus nos Evangelhos nos convida a reconhecer as fronteiras como espaços onde Cristo é revelado em nosso meio, onde a Igreja está sendo levada e reformada. Revendo as fronteiras, não como espaços onde identidades e relacionamentos terminam, mas onde podem começar a crescer. Somos mais capazes de perceber nelas a possibilidade de encontro, conversão e salvação, do que em qualquer outro lugar. A solidariedade através das fronteiras próximas e distantes torna-se uma possibilidade real quando abordamos essa união não como uma demonstração de boas vindas, mas sim como um ato soteriológico: um desejo de verdadeira comunhão com nossos vizinhos.

A questão que o papa Francisco implicitamente nos propõe, então, é: onde estão as fronteiras em nosso meio? Para onde estamos sendo chamados a construir pontes?

É tentador acreditar que o discipulado missionário - o impulso externo e centrífugo em direção ao encontro amoroso do qual Francisco e os bispos latino-americanos freqüentemente falam - nos leva a viajar para outro lugar. Nos Estados Unidos, nossas histórias em grande parte raciais, culturais e economicamente segregadas encorajam o equívoco de que, para encontrar as diferenças de maneira definitiva e desafiadora, precisamos viajar meio mundo - como em uma viagem de missão. A noção de que o lugar da solidariedade está em outro espaço é enganosa, porque nos tira a responsabilidade de examinar os contornos de nossas realidades locais. Quero sugerir que, para os católicos, o trabalho de solidariedade através das fronteiras começa na maioria das comunidades locais: a paróquia.

Novas formas de vida paroquial

A Igreja no mundo está no meio de uma profunda transformação que se manifesta vividamente no nível paroquial. De acordo com dados do Centro de Pesquisa Aplicada no Apostolado da Universidade de Georgetown, mais de um terço das paróquias católicas nos Estados Unidos serviram a um número significativo de paroquianos de várias comunidades culturais, étnicas ou linguísticas a partir de 2010. Essa tendência está aumentando constantemente. Enquanto as paróquias têm sido locais de intenso intercâmbio intercultural, a Igreja tem sido uma presença ainda mais forte no contexto das fronteiras, o momento atual é único em aspectos fundamentais.

Hoje, os católicos latino-americanos, africanos, afro-americanos, asiáticos e nativos americanos são responsáveis pela vitalidade contínua da Igreja nos Estados Unidos, por exemplo. Segundo estimativas da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, mais da metade de todos os católicos norte-americanos de hoje não são de ascendência euro-americana. Só os latinos compreendem quase 40% dos católicos norte-americanos e mais da metade dos católicos com menos de 40 anos. O centro de gravidade da Igreja está mudando rapidamente para o sudeste e o oeste, em grande parte devido à migração.

Enquanto isso, as abordagens dos católicos para a vida paroquial estão mudando. Considerando que, há um século, novos imigrantes poderiam ter se estabelecido em enclaves territoriais com paróquias nacionais, mudanças na lei canônica, a opinião social e a própria imigração fizeram, em grande parte, o estabelecimento formal das paróquias de nacionalidade unicamente como um vestígio do passado.

Hoje, a paróquia culturalmente compartilhada não é um arranjo temporário, mas um modelo único e emergente de vida paroquial por si só. No entanto, como observa o teólogo Brett Hoover, a coexistência de múltiplas comunidades culturais em uma única paróquia muitas vezes parece um arranjo ad hoc, algo que funciona por enquanto (ou não), mas também tem uma aura de fragilidade.

Separados no mesmo espaço

Dentro de muitas paróquias que congregam pessoas de diferentes origens, as subcomunidades culturais existem em esferas separadas: elas se congregam em diferentes missas, específicas do idioma, cantam em corais diferentes, participam de ministérios separados e geralmente orbitam em torno umas das outras, encontrando-se por breves momentos no estacionamento ou duas vezes por ano em alguma missa bilíngue. Em outras paróquias, particularmente aquelas que possuem planos de colaboração intercultural e apostolados de justiça intrínsecas às suas missões, distintas comunidades culturais desenvolveram um repertório compartilhado de orações, práticas e canções. Essas comunidades reconhecem que cruzar fronteiras é um jogo a longo prazo, um processo contínuo realizado não em uma missa ou em um ano, mas sim em uma dinâmica que se desenvolve ao longo de décadas.

A separação cultural nas paróquias não é intrinsecamente negativa. As comunidades culturalmente particulares são espaços vitais de capacitação e encontro para seus membros. O problema surge quando a distinção cultural se calcifica em uma divisão inacessível. A paróquia deixa de ser uma comunidade em qualquer sentido significativo.

A separação é meramente um sintoma. O pecado é o nosso contentamento com isso. De fato, na maioria das paróquias mistas, as relações de poder assimétricas entre subcomunidades e falta de genuínas relações interculturais entre os membros coincidem com forças estruturais maiores e tipicamente não reconhecidas de normatividade branca, racismo e xenofobia para fazer com que o primeiro passo para o engajamento intercultural seja incômodo na melhor das hipóteses e perigoso na pior delas.

Talvez mais do que qualquer outra instituição na vida cotidiana, as paróquias são lugares onde somos convidados à tarefa desafiadora de nos unirmos e amarmos as outras pessoas em suas diferenças. Isso não é fácil. É muito diferente da sugestão benigna de que “celebramos a diversidade”, que não exige nada mais de nós do que a tolerância vaga da existência de pessoas que não são como nós.

A solidariedade na diferença exige, nas palavras do teólogo Gustavo Gutiérrez, uma conversão para o outro. Para os católicos brancos, requer disposição para serem desafiados nas pressuposições de normatividade, uma disposição para ser o hóspede no lugar onde estamos acostumados a ser o anfitrião.

A paróquia é tradicionalmente definida como uma comunidade estável dos fiéis. Hoje, é claro que a paróquia é também um lugar de ambiguidade, mudança, hibridismo e identidades contestadas. Nossas paróquias são, em um sentido real, as fronteiras de nosso cotidiano.

A liturgia como solidariedade

A liturgia nos oferece recursos para negociar essas fronteiras eclesiais. Os cientistas sociais e os teólogos afirmaram há muito tempo, nas palavras do sociólogo da religião R. Stephen Warner, “o papel crucial do ritual encarnado como chave para a capacidade que a religião tem de ultrapassar fronteiras, tanto entre comunidades como entre indivíduos”. As paróquias, como se vê, são ambientes ricos em rituais e, portanto, nos oferecem recursos ricos para negociar a diferença.

Como é muito claro para quem já participou de uma missa bilíngue, o trabalho de fomentar a comunidade intercultural nas paróquias não termina com missas como estas. De fato, liturgias bilíngues podem parecer onerosas e dispersas, mesmo onde elas são a norma. A liturgia não é uma mágica para obter harmonia. Deve fazer parte de um esforço abrangente para promulgar a justiça em todos os níveis da paróquia e da vida diocesana através de processos intencionais de escuta e diálogo, de análise cuidadosa das estruturas de poder, de oportunidades de comunhão jovial além do espaço litúrgico e de formação e capacitação de leigos e leigas, de formação para líderes ordenados de dentro das comunidades latina, negra, asiática e nativa americana.

No entanto, o significado da liturgia neste trabalho complexo não deve ser menosprezado. De fato, as tentativas de promover a comunidade através da participação litúrgica inclusiva desenham um instinto semelhante àqueles elaborados pelos estudiosos: nós nos tornamos comunidade fazendo comunidade. A grande sacada da teórica cultural chicana Gloria Anzaldúa no clássico verso do poeta espanhol Antonio Machado capta o espírito desta tarefa: “caminhante não há caminho se faz caminho ao andar").

Movidos pela práxis do papa Francisco, poderíamos entrar neste complexo trabalho aproximando as missas bilíngues não como inconveniência, mas como atos de solidariedade litúrgica? Contudo, os estudiosos não vêem mais a uniformidade como o pré-requisito ou o resultado do ritual. Em vez disso, em contextos de profunda diversidade, a participação compartilhada em rituais pode ajudar a cultivar a comunidade em suas diferenças, inaugurando-nos no que Roberto Goizueta chama de visão de “vida no subjuntivo”.

O ritual nos oferece um roteiro comum e corporificado para viver no tipo de comunidade que esperamos nos tornar - a comunidade que gostaríamos de ser - de uma maneira que reforme nossas imaginações relacionais. Enquanto nos levantamos juntos, cantamos juntos (mesmo imperfeitamente), sentamos ombro a ombro, trocamos um beijo de paz, caminhamos juntos, comemos em um prato comum e bebemos de um cálice comum - e fazemos isso de novo e de novo - lentamente nos tornamos o que recebemos na Eucaristia.

Não nos juntamos uns aos outros para sermos politicamente corretos ou para celebrar a diversidade de alguma forma superficial. Fazemos isso porque acreditamos que a salvação é comunitária e o ritual é a linguagem da comunidade. A solidariedade é uma expressão de nossa gente, a plenitude dessa comunhão, unida através de fronteiras próximas e distantes como o corpo de Cristo.


America Magazine - Tradução: Ramón Lara

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