sábado, 29 de junho de 2019

Um mestre esquecido, um presente resgatado


'Lasca', livro de Vladímir Zazúbrin, revela os porões do governo soviético e o horror da política de combate aos inimigos da revolução através das lentes de um burocrata.


Soldados abrem vala comum para enterrar mortos durante as batalhas de 1917
Soldados abrem vala comum para enterrar mortos durante as batalhas de 1917 (Manuel Cohen/AFP)
Por Jacques Fux
Em Noite e neblina, o artístico filme de Alain Resnais (1922-2014) que tenta resgatar/recriar as atrocidades perpetradas pelos nazistas durante a Segunda Guerra, há uma cena emblemática e tocante: no Tribunal de Nuremberg, ao buscarem os “culpados” pelo genocídio, um clima de incompreensão, mal-estar e absurdo se instaura: “Os deportados se olham e não entendem./ Estão libertados?/ A vida cotidiana os receberá de volta?/ Eu não sou responsável, diz o kapo./ Eu não sou responsável, diz o oficial./ Eu não sou responsável... / Então quem é responsável?”. O belíssimo texto, escrito por Jean Cayrol, associado às imagens e à melancólica música escolhida por Resnais, “não recria histórias particulares – ressignifica os restos” ao escancarar a “banalidade do mal”.
Desnorteados ficamos por não conhecer a mente dos perpetradores. Projeto impossível, é claro. Cada época nos apresenta seus “culpados” e seus “crimes”. Lasca, o angustiante livro de Vladímir Zazúbrin, nos revela a figura de Andrei Srúbov, um burocrata kafkaniano que divide seu tempo entre um gabinete lotado de documentos e um porão onde empreende uma fábrica de fuzilamento. Srúbov é um criminoso? Um assassino? Ou apenas um oficial que seguia ordens? Só Hannah Arendt – mesmo sem conhecer nosso personagem e autor – pode nos ajudar.
Vladímir Zazúbrin é o pseudônimo de Vladímir Yákovlevich Zubtzov. Filho de um ferroviário que se engajou na Revolução de 1905, o futuro escritor se tornaria um bolchevique ainda adolescente. Durante a Revolução de 1917, infiltra-se na Okhrana, a polícia secreta czarista. Escreveu sua primeira novela aos 17 anos e, com a vitória da revolução, assumiu um cargo num banco estatal. Em seguida, talvez obrigado, juntou-se às forças antirrevolucionárias e, em 1919, desertou e voltou a se associar aos bolcheviques.
Assim como o episódio mostrado por Resnais atormenta, a cena inicial de Lascaarrebata: na Sibéria, um caminhão aguarda para recolher inúmeros corpos dos então “inimigos do regime” executados no interior de um prédio da Tcheká – a Comissão Extraordinária para Luta contra a Contrarrevolução e Sabotagem, antecessora da KGB. Em um dia de trabalho normal/banal, um militar estrangula o outro, condenado obviamente sem julgamento, enquanto que, ao lado, um padre entoa uma oração.
Escrito em 1923, Lasca só foi publicado/descoberto em 1989 graças à Perestroika e a Glasnot impostas pelo governo de Mikhail Gorbatchov. Lasca revela o aparato de terror e extermínio das forças de segurança soviéticas nos primeiros anos após a Revolução Comunista de 1917. Não nos surpreende que, com o recrudescimento do regime, o lúcido e realista escritor viria a ser fuzilado no auge da repressão stalinista.
Lasca é nauseante – mostra os pormenores dos assassinatos, margeia as histórias dos familiares dos fuzilados, estampa o vermelho sanguíneo dos abates humanos – e também é banal-cruel – narra o cotidiano de burocrata, apresenta um diálogo entre esse mesmo burocrata e o oficial que teve como função matar seu pai, inebria pelos caminhos do álcool e do esquecimento do ofício diário de um funcionário que deve combater atos contrários ao status quo.
Srúbov acredita que a revolução – “Ela’, uma lasca que se desprende de uma jangada furada, ao qual persevera inutilmente em agarrar – é uma entidade acima do bem e do mal: “Ela não é uma ideia. Ela é um organismo vivo. Ela é uma grande mulher grávida. Ela é a mulher que acalenta seu bebê que está para nascer”. Esse tom estranho, esse ritmo narrativo escuro e vermelho – talvez um heimlich kafkaniano, no qual nos passa sentimentos acerca do inquietante, do desconfortável, do sombrio, obscuro, assombrado, repulsivo, sinistro, suspeito, lúgubre, demoníaco, secreto e oculto – é fruto, além de uma tensa e engenhosa trama vil, da excelente tradução do especialista em literatura russa Irineu Perpétuo. Esse “estranho” com a qual o livro nos lacera ainda é elevado quando o narrador descreve uma conversa “de bar” sobre a possibilidade de se violar uma condenada antes de fuzila-la.
Lasca, assim como Noite e neblina, é uma obra de arte sobre o terror e sobre a banalidade. Sobre o autoritarismo que não exime a culpa, mas a camufla. Sobre um período histórico que, embora pareça distante e absurdo, insiste em retornar e resiste em aprender com os erros.
LASCA
De Vladímir Zazúbrin
Tradução de Irineu Perpétuo
Editora Carambaia
128 páginas
R$ 67,80

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