'Lasca', livro de Vladímir Zazúbrin, revela os porões do governo soviético e o horror da política de combate aos inimigos da revolução através das lentes de um burocrata.
Soldados abrem vala comum para enterrar mortos durante as batalhas de 1917 (Manuel Cohen/AFP)
Por Jacques Fux
Em Noite e neblina, o artístico filme de Alain Resnais (1922-2014) que tenta resgatar/recriar as atrocidades perpetradas pelos nazistas durante a Segunda Guerra, há uma cena emblemática e tocante: no Tribunal de Nuremberg, ao buscarem os “culpados” pelo genocídio, um clima de incompreensão, mal-estar e absurdo se instaura: “Os deportados se olham e não entendem./ Estão libertados?/ A vida cotidiana os receberá de volta?/ Eu não sou responsável, diz o kapo./ Eu não sou responsável, diz o oficial./ Eu não sou responsável... / Então quem é responsável?”. O belíssimo texto, escrito por Jean Cayrol, associado às imagens e à melancólica música escolhida por Resnais, “não recria histórias particulares – ressignifica os restos” ao escancarar a “banalidade do mal”.
Desnorteados ficamos por não conhecer a mente dos perpetradores. Projeto impossível, é claro. Cada época nos apresenta seus “culpados” e seus “crimes”. Lasca, o angustiante livro de Vladímir Zazúbrin, nos revela a figura de Andrei Srúbov, um burocrata kafkaniano que divide seu tempo entre um gabinete lotado de documentos e um porão onde empreende uma fábrica de fuzilamento. Srúbov é um criminoso? Um assassino? Ou apenas um oficial que seguia ordens? Só Hannah Arendt – mesmo sem conhecer nosso personagem e autor – pode nos ajudar.
Vladímir Zazúbrin é o pseudônimo de Vladímir Yákovlevich Zubtzov. Filho de um ferroviário que se engajou na Revolução de 1905, o futuro escritor se tornaria um bolchevique ainda adolescente. Durante a Revolução de 1917, infiltra-se na Okhrana, a polícia secreta czarista. Escreveu sua primeira novela aos 17 anos e, com a vitória da revolução, assumiu um cargo num banco estatal. Em seguida, talvez obrigado, juntou-se às forças antirrevolucionárias e, em 1919, desertou e voltou a se associar aos bolcheviques.
Assim como o episódio mostrado por Resnais atormenta, a cena inicial de Lascaarrebata: na Sibéria, um caminhão aguarda para recolher inúmeros corpos dos então “inimigos do regime” executados no interior de um prédio da Tcheká – a Comissão Extraordinária para Luta contra a Contrarrevolução e Sabotagem, antecessora da KGB. Em um dia de trabalho normal/banal, um militar estrangula o outro, condenado obviamente sem julgamento, enquanto que, ao lado, um padre entoa uma oração.
Escrito em 1923, Lasca só foi publicado/descoberto em 1989 graças à Perestroika e a Glasnot impostas pelo governo de Mikhail Gorbatchov. Lasca revela o aparato de terror e extermínio das forças de segurança soviéticas nos primeiros anos após a Revolução Comunista de 1917. Não nos surpreende que, com o recrudescimento do regime, o lúcido e realista escritor viria a ser fuzilado no auge da repressão stalinista.
Lasca é nauseante – mostra os pormenores dos assassinatos, margeia as histórias dos familiares dos fuzilados, estampa o vermelho sanguíneo dos abates humanos – e também é banal-cruel – narra o cotidiano de burocrata, apresenta um diálogo entre esse mesmo burocrata e o oficial que teve como função matar seu pai, inebria pelos caminhos do álcool e do esquecimento do ofício diário de um funcionário que deve combater atos contrários ao status quo.
Srúbov acredita que a revolução – “Ela’, uma lasca que se desprende de uma jangada furada, ao qual persevera inutilmente em agarrar – é uma entidade acima do bem e do mal: “Ela não é uma ideia. Ela é um organismo vivo. Ela é uma grande mulher grávida. Ela é a mulher que acalenta seu bebê que está para nascer”. Esse tom estranho, esse ritmo narrativo escuro e vermelho – talvez um heimlich kafkaniano, no qual nos passa sentimentos acerca do inquietante, do desconfortável, do sombrio, obscuro, assombrado, repulsivo, sinistro, suspeito, lúgubre, demoníaco, secreto e oculto – é fruto, além de uma tensa e engenhosa trama vil, da excelente tradução do especialista em literatura russa Irineu Perpétuo. Esse “estranho” com a qual o livro nos lacera ainda é elevado quando o narrador descreve uma conversa “de bar” sobre a possibilidade de se violar uma condenada antes de fuzila-la.
Lasca, assim como Noite e neblina, é uma obra de arte sobre o terror e sobre a banalidade. Sobre o autoritarismo que não exime a culpa, mas a camufla. Sobre um período histórico que, embora pareça distante e absurdo, insiste em retornar e resiste em aprender com os erros.
LASCA
De Vladímir Zazúbrin
Tradução de Irineu Perpétuo
Editora Carambaia
128 páginas
R$ 67,80
Nenhum comentário:
Postar um comentário