quinta-feira, 11 de julho de 2019

Chico, com açúcar, com atraso

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Chico está no imaginário nacional há mais de meio século.
Chico está no imaginário nacional há mais de meio século.
Chico está no imaginário nacional há mais de meio século. (AFP)
Por Ricardo Soares*

Eu estava fora do Brasil e achei muito significativa e justa a lembrança pelos 75 anos de Chico Buarque. O 19 de junho ressoou também na Córsega e, creio eu, em outros tantos pontos do planeta muito mais do que em anos passados talvez porque, desalentados, onde houver brasileiros com emoção à flor da pele haverá uma lembrança dessa coluna jônica de nossa identidade que é o autor de Construção, entre tantas outras maravilhas.

Muitos escreveram e falaram sobre ele, inclusive nas redes sociais, em bolhas distintas, como se precisássemos nos agarrar em tábua de salvação. Chico sim nos leva sem escalas a um país das delicadezas já perdidas. Foram muitas lembranças oportunas e surpreendentes, como a enviada por Cida Moreira, amiga cantora e superlativa interprete de Chico, que resgatou um documentário de Mauricio Berú. No elenco, amigos e parceiros de Chico, entre os quais a própria Cida que canta Geni e o zepelim. O ano era 1980 e Chico no alto dos seus 36 anos não só já era consagrado como já havia composto muitas das suas principais relíquias.

O assombroso talento de Chico segue passando por nossas janelas e o incluo naquele panteão de seres humanos que deveriam ser proibidos de morrer como Fellini, Tom Jobim, Garcia Márquez, Ariano Suassuna e outras maravilhas do mundo moderno. Chico está no imaginário nacional há mais de meio século. Desde que me conheço por gente vejo a banda dele passar pois já ouvia suas canções desde o jardim da infância quando atravessava a Via Anchieta levado pelas mãos de uma cautelosa vizinha.

Muitos querem e queriam ter o talento de Chico. Muitos homens quiseram ser Chico Buarque de Hollanda como bem lembrou uma remota crônica do finado jornalista e psicólogo Ruy Fernando Barboza. No entanto, Chico é paradoxalmente uno mas divisível nos representando em várias encadernações e não apenas as femininas. 

Chego a pensar – sim, com preconceito – que quem não gosta de Chico bom sujeito não é. Muitos dos que o detestam estupidamente justificam por conta de suas opções políticas, como se o artista ter optado a esquerda não torna a sua obra mais do que direita com o perdão do infame trocadilho. Aliás, alguns dos detratores de Chico que conheço são artistas frustrados, infelizmente. Gente amarga que defende o tal liberalismo, o "deus-mercado" acima de tudo. Até das artes. Mas essa é outra prosa. A acrescentar apenas que, depois de Chico ser ofendido por playboys imbecis na saída de um restaurante há poucos anos, tive a impressão que alguma coisa estava definitivamente fora da ordem. Um país que ofende Chico é um país doente.

Se você, enfim, teve a paciência de ler até aqui a essa modesta crônica é porque como eu é admirador da obra do Chico. Vê nele a importância de um cultor da língua muito além da prosa e do verso. Eu também acho um privilégio ser contemporâneo de um caboclo que tão bem representa a época em que vivo. E sinto certo alívio em saber que, metaforicamente, posso sim segurar a mão dele e saber que aquilo que ele canta os meus males espanta numa época vil, torpe , sacripanta.

*Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Publicou oito livros, dirigiu 12 documentários.

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