sexta-feira, 2 de agosto de 2019

A fome ensina humanidades


Mesmo não tendo sofrido a fome, os cristãos devem dar de comer a quem convive com ela diariamente.


A fome é a face oculta e silenciosa do capitalismo. Na foto, mãe com dois filhos anda até um centro de distribuição de comida na Somália em 2017.
A fome é a face oculta e silenciosa do capitalismo. Na foto, mãe com dois filhos anda até um centro de distribuição de comida na Somália em 2017. (AFP)
Por Tânia da Silva Mayer*
“... Fui na feira da Rua Carlos de Campos, catar qualquer coisa. Ganhei bastante verdura. Mas ficou sem efeito, porque eu não tenho gordura. Os meninos estão nervosos por não ter o que comer”.
“... O que eu aviso aos pretendentes a politica, é que o povo não tolera a fome. E preciso conhecer a fome para saber descrevê-la”.
“... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças”
(Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, 2014)
O leitor ou a leitora deste artigo pode imaginar e se afetar com o fato de que há centenas de milhares de pessoas passando fome em diversas regiões do mundo neste exato momento? É capaz de localizar mais uma criança que morreu de fome neste último minuto? É capaz de chorar essa morte? O leitor ou a leitora poderá ainda se indignar, compadecer-se e se engajar na luta cotidiana contra a fome de numerosos semelhantes?
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A fome é a face oculta e silenciosa do capitalismo. Pessoas morrem de fome em diferentes lugares do mundo, às vezes elas morrem nos quintais de nossas casas ou nas esquinas e praças por onde trafegamos. Seus sinais são abundantes, vão das latas de alimentos vazias até os corpos esqueléticos com olhar profundo. Há quem se arrisque a pintar a fome ou torna-la uma escultura ou ainda a fazer dela uma narrativa. Mas tudo isso está longe de significar um sem número de pessoas que estão condenadas e senti-la dia após dia como a uma tortura permanente.
Quem nunca passou fome na vida, não imagina o que é conviver com a presença da ausência do alimento para a subsistência e não do alimento de degustação de programa gourmet. Quem nunca passou fome na vida, pode se tornar incapaz de perceber que há pessoas que passam e morrem por não ter o que comer. A negação dessa face cruel da realidade é perversa e pode se revelar em afirmações como: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não. Você não vê gente pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países por aí pelo mundo” (cf. Bolsonaro, 19 de julho de 2019, durante café da manhã com jornalistas estrangeiros).
Diante da própria fome, há uma luta para saciá-la. Diante da fome do outro, quando ainda nos resta algo de humanidade, há oportunidade para o respeito e para a solidariedade. E essas atitudes começam a ser viáveis quando partimos da verdade do outro que está em situação de extrema miséria. Afirmar que a dor na barriga por falta de comida é uma mentira vivida por muitas pessoas no Brasil é o auge da desumanidade, porque se quer justamente ocultar o sofrimento de milhares à luz dos banquetes e churrascos oferecidos aos “amigos” com dinheiro público que deveria estar sendo destinado ao combate da miséria e da pobreza em nosso país. Mas nós podemos ser melhores que isso.
A obra modernista O quinze, de Raquel de Queirós, foi publicada em 1930 e retrata o drama da histórica seca de 1915, que assolou o interior do Ceará e culminou com a migração de centenas de pessoas em direção à capital e de lá para onde o carcará não festejasse sobre os cadáveres dos que morreram pela fome. A obra é constituída de dois blocos fundamentais que se orientam graças ao entrelaçamento da história das personagens que os compõem. De um lado, temos um núcleo formado ao redor de Conceição e sua família. Eles representam a oligarquia cearense, possuidora de bens e propriedades. De outro lado, está o núcleo formado por Chico Bento, trabalhador rural, vulnerável aos efeitos da seca de 1915, sofredor das consequências desta.
Chamou-nos a atenção, na obra de Raquel de Queirós, a maneira de narrar o drama vivido por Chico Bento e sua família no auge da seca que assola o Ceará. Vendo-se obrigado a emigrar da terra, onde possuiu trabalho, casa e algumas criações, e tendo que partir na angustiante esperança de não morrer de fome e poder reconstruir a vida, Chico Bento se considera um desgraçado.
A desgraça que se abateu sobre a sua vida é a seca que o obriga a realizar a travessia em busca de uma terra prometida na qual o fantasma da fome não o importunasse mais. No entanto, será nessa travessia que ele perderá a dignidade, bem como assistirá a morte e a perda de seus filhos e o minguar do corpo de sua mulher. Chico e sua família são os desgraçados da seca: ao mando da patroa de deixar à sorte o gado da fazenda em que trabalhava, Chico vende tudo o que tem a preço de banana sob a promessa de que ganharia as passagens de trem do Governo para sair do Ceará e fugir dos males cada vez mais próximos.
A condição de retirante vai confirmando a desgraça da família que vai sendo desfeita graças às intempéries do êxodo a que foram submetidos. Mas há algo bastante interessante, que vai além do fato de Chico Bento se entender um desgraçado, que reside em certo altruísmo solidário para com outros retirantes que se encontram com ele e sua família. A cena que se passa durante a longa caminhada traz um alento para nosso costumeiro egoísmo. Em vias de se alimentarem de um animal em decomposição, os retirantes, que não comiam fazia tempo, são surpreendidos pelo convite de Chico, para que deixassem aos urubus as carniças das quais se alimentavam e fizessem refeição com ele e sua família.
Fica claro na trama que o gesto da personagem, de convidar os retirantes para comerem do pouco que trazia consigo para a subsistência da família e que está em vias de acabar, se dá muito em razão de Chico Bento considerar os outros retirantes uns desgraçados. A esses mais desgraçados, deve-se estender a mão. A cena revela uma fina percepção de que há uma hierarquia entre os que se vêem obrigados a fugir da seca para não morrer de fome. Mas também é possível perceber que o gesto de solidariedade se sobrepõe ao egoísmo que poderia querer o pouco alimento para matar a fome da própria miséria.
A fome ensina muito e, por isso, Carolina Maria de Jesus escreve, em seu Diário de uma favelada, que ela é professora. Parece existir uma forte identificação para com aqueles que compartilham de experiências semelhantes, tal como na cena supracitada de O quinze. Precisamente, a autora provoca mostrando que do lugar da fome se aprende a pensar e a respeitar as outras pessoas que também passam pela mesma dificuldade. Nesse sentido, a fome opera a humanização.
O cristianismo faz memória de Jesus com comida e bebida. E a eucaristia é celebrada sob os signos do banquete e diante das milhares de pessoas que não têm o mínimo para comer. Os cristãos são exortados a se desprenderem do egoísmo e a exercitar a compaixão pelo outro. Significa que, mesmo não tendo sofrido a fome, devem dar de comer a quem convive com ela diariamente. O socorro dos famintos constitui um imperativo ético tanto no antigo quanto no novo testamentos. Quem socorre os famintos, antes mesmo de responder à fé no Deus que providencia alimento para o povo faminto no deserto, revela que a humanidade é capaz de se afetar e se mover diante do padecimento do semelhante. Se a fome é um tipo cruel de carência, ela o é por causa da desumanização de quem tem as mesas fartas de egoísmo e de omissão diante de uma realidade que é o calvário da nossa gente brasileira: a fome. Essa cena precisa mudar, urgentemente.
*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.

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