sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Decisão de Francisco: Padre pedófilo direto na mão da Justiça

Uma explicação sobre a última decisão do papa e seu impacto na Igreja Católica
Papa em encontro com os padres da diocese de Roma, em março deste ano
Papa em encontro com os padres da diocese de Roma, em março deste ano (Vatican Media/ Ansa)
Mirticeli Medeiros*

Papa Francisco prometeu e cumpriu: tolerância zero diante da pedofilia. A medida que ele tomou nesta semana é uma das mais revolucionárias do seu pontificado. Se ainda existia algum muro daquele “corporativismo eclesial” - que ele vem combatendo desde quando assumiu o governo da Igreja –, suas ruínas estão rentes ao chão após a fundamental decisão de abolir o segredo pontifício diante de denúncias de abusos sexuais de crianças cometidos por religiosos.

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Mas o que significa o segredo pontifício? Na prática, a norma – estabelecida por Paulo VI em 1974 – visava preservar a confidencialidade dos processos e salvaguardar, de certa maneira, a autonomia da Santa Sé na averiguação dos casos. Com a autorização de Francisco, a Justiça civil poderá acompanhar todos os autos do processo e dar andamento à investigação, sem necessariamente “esperar” pela Santa Sé.

Até agora, a maioria das intervenções de Francisco em relação ao tema foram feitas sem intermediários ou consultas prévias: foi ele quem bateu o martelo. O motu proprio – o tipo de texto publicado no último dia 17 – é um documento que, dentro da jurisdição eclesiástica, expressa a vontade pessoal do pontífice.

É vontade do papa se desviar dos escândalos em um momento no qual a instituição prende il sopravvento, como se diz em italiano. Ou seja, a Igreja se recupera de uma fase de impopularidade após o famoso Vatileaks, escândalo que abalou o pontificado do antecessor, Bento XVI, em 2012.

À época, o vazamento de documentos secretos da Santa Sé demonstrou que essa disputa de poder dentro dos sagrados palácios era tão vivo quanto no período renascentista. Aqui na Itália, os mais otimistas veem em Francisco como aquele que colocará um fim ao “catolicismo de corte”. E foi o próprio papa a dizer que existe uma profunda relação entre o clericalismo - o nome dado à esse tipo de atitude - e o abuso de menores.

A Igreja é uma fortaleza e isso não podemos negar. Nela muitos religiosos corruptos, ao longo dos anos, lá se refugiaram. E isso nos faz perceber o quanto a estrutura caduca dos seminários – que como identificou o teólogo italiano Massimo Faggioli, ainda segue o organograma do Concílio de Trento, do século 16 – precisa de uma reforma urgente. Se de um lado Francisco diz que “bate demais nos padres” através do seu discursos, talvez seja hora de ele enfrentar o problema da formação dos candidatos ao sacerdócio. Aí sim, seria a cereja do bolo que falta.

A popularidade do papa atual não atrai somente admiradores ao redor do mundo, mas promove um movimento de resgate dos valores cristãos. O homem pós-moderno, carente de referências, se deu conta que o cristianismo, vivido na sua essência, é capaz de resgatar a humanidade desse emaranhado de falta de sentido. Mas enquanto o testemunho não anteceder as palavras, será vã qualquer pregação. Ainda bem que Francisco entendeu isso.

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.

20/12/2019 | domtotal.com

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