quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Por acaso o Vaticano está enganando seus benfeitores?

domtotal.com

Reportagem acusa Santa Sé de má gerência sobre o Óbolo de São Pedro


Criança ajuda a coletar doações duranteMissa na Igreja de St. Willebrord em Green Bay, Wis., 26 de abril
Criança ajuda a coletar doações duranteMissa na Igreja de St. Willebrord em Green Bay, Wis., 26 de abril (CNS photo/ Sam Lucero, The Compass)
Colleen Dulle e James T. Keane*

Um artigo publicado em 11 de dezembro pelo Wall Street Journal, por Francis X. Rocca, tinha uma manchete provocadora e até chocante: “O Vaticano usa doações destinadas aos pobres para suprir seu déficit orçamentário”. Focando no Óbolo de São Pedro, fundo que concentra doações mundiais para obras de caridade ligadas diretamente ao papa, o artigo afirma que apenas 10% da arrecadação anual, estimada em US$ 55 milhões (embora nos últimos anos tenha sido maior), é destinada a obras de caridade e que dois terços do dinheiro são usados para cobrir o crescente déficit do Vaticano.
Por acaso o Vaticano está enganando seus benfeitores? O site da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos explica o propósito da iniciativa de caridade, geralmente realizada nas paróquias dos EUA no último fim de semana de junho, e continua: “Hoje, o fundo do Óbolo de São Pedro apoia a filantropia do papa, dando ao santo padre a decisão final de prestar assistência de emergência aos necessitados por causa de desastres naturais, guerras, opressões e doenças”.
O próprio Vaticano é mais cauteloso em sua descrição da iniciativa de caridade. “É uma oferta que cada um dos fiéis decide dar ao papa para que ele possa suprir as necessidades de toda a Igreja”, afirma o site do Vaticano sobre o fundo, “especialmente nos lugares onde a Igreja experimenta maiores dificuldades”. Além disso, as obras de caridade do papa “se estendem a toda a humanidade, para cujo serviço as estruturas da Igreja existem. Por esse motivo, o Óbolo de São Pedro também contribui para o apoio da Sé Apostólica e as atividades da Santa Sé no mundo”.
Outro site da Secretaria de Estado do Vaticano acrescenta mais detalhes:
"As ofertas dos fiéis ao santo padre estão destinadas às necessidades da Igreja, a iniciativas humanitárias e projetos de promoção social, bem como ao apoio da Santa Sé. Pastor de toda a Igreja, o papa está atento às necessidades materiais das dioceses mais pobres, institutos religiosos e fiéis em graves dificuldades (pobres, crianças, idosos, marginalizados e vítimas de guerra ou desastres naturais; também supõe ajuda concreta para bispos ou dioceses necessitadas, educação católica, assistência a refugiados e imigrantes etc.)".
O fato de o Vaticano estar usando fundos do Óbolo de São Pedro para equilibrar seu orçamento dificilmente seria um segredo bem guardado. Em seu livro de 1992, Um rebanho de pastores, Thomas J. Reese, S.J., ex-editor-chefe da América Magazine, descreveu o Óbolo de São Pedro como "um fundo mundial que ajuda o papa em seu serviço a toda a Igreja. Em 1989, foram arrecadados US$ 13,6 milhões nos Estados Unidos. Esse dinheiro costumava ser destinado às instituições de caridade do papa, mas agora ajuda a equilibrar o orçamento do Vaticano”. O padre Reese cita o cardeal John Krol, da Filadélfia, que havia trabalhado para arrecadar dinheiro para o Vaticano: “eles começaram a tirar um pouco do dinheiro das doações, cada vez mais e mais e depois tudo” para equilibrar o déficit no orçamento. Os déficits devem ser cobertos por fontes alternativas, disse o cardeal Krol, e "o dinheiro do óbolo deve voltar ao papa para atender às necessidades dos pobres".
Quando contatado para este artigo, o padre Reese comentou que “se o Vaticano não é mais transparente em suas finanças, não temos como julgar a verdade da história do Wall Street Journal, mas sabemos que, no final dos anos 80, o Óbolo de São Pedro foi usado comumente para equilibrar o orçamento deficitário da Santa Sé".
Bento e Francisco
O papa Bento XVI chamou o Óbolo de São Pedro de: "a expressão mais característica da participação de todos os fiéis nas iniciativas de caridade do bispo de Roma em favor da Igreja Universal" em um discurso de 2006 citado no site da Secretaria de Estado. "O gesto tem não apenas um valor prático, mas também um forte valor simbólico, como sinal de comunhão com o papa e atenção às necessidades dos irmãos".
O próprio papa Francisco defendeu a maneira como o Vaticano administra o fundo, chamando-o de "boa administração". Um jornalista italiano perguntou, durante uma entrevista coletiva no avião papal, quando retornou de sua viagem ao Japão, sobre o uso das finanças do Vaticano na compra de propriedades multimilionárias em Londres, dizendo que as pessoas “ficam um pouco confusas com esse uso das finanças do Vaticano, principalmente quando o Óbolo de São Pedro está envolvido”. O jornalista então perguntou se Francisco estava ciente de tais operações financeiras e se, “em sua opinião, é correto o modo como o está sendo usado o óbolo?”
“Quando o dinheiro do Óbolo de São Pedro chega, o que faço com ele? Coloco em uma gaveta? Não. Isso é má administração”, disse Francisco. “Tento fazer um investimento e, quando preciso doar, quando há necessidade, ao longo do ano, o dinheiro é retirado e esse capital não desvaloriza, permanece o mesmo ou aumenta um pouco. Esta é uma boa administração”.
"E sim", Francisco continuou. "Também é possível comprar um imóvel, alugá-lo e depois vendê-lo, mas sempre, com todas as medidas de segurança para o bem do povo e do Óbolo de São Pedro".
A história
O nome de Óbolo de São Pedro deriva de um costume inglês do século IX iniciado pelo rei Alfred, o Grande, que coletava dinheiro de proprietários de terras como apoio financeiro ao papa. Outro dinheiro veio de taxas para casamentos, funerais e crismas. As primeiras coletas do óbolo de São Pedro também incluíam impostos especiais para financiar as Cruzadas. Ao longo dos séculos, a prática declinou, especialmente após a Revolução Francesa, quando o papado se viu no ponto mais baixo de sua história política.
Em 1870, quando o Risorgimento italiano provocou a unificação da Itália, o Vaticano perdeu muitas propriedades e bens significativos. “A agenda do Risorgimento italiano estava baseada na destruição do poder temporal do papado”, escreveu Jeffrey von Arx, SJ, na América, “assim como na destruição do governo do papa nos Estados Pontifícios, sobre os quais a independência política do papado e sua posição como ator internacional estava em declínio".
Sob o papa Pio IX, o Vaticano começou a incentivar o renascimento das doações através da moeda de um centavo, com a face de São Pedro, em todo o mundo católico. Foi conhecido em italiano como Obolo di San Pietro ("a oferta dos fiéis"), e os fundos deveriam ser usados não apenas para instituições de caridade, mas também para as despesas operacionais diárias do VaticanoEm Banqueiros de Deus: uma história de dinheiro e poder no Vaticano, Gerald Posner oferece um relato altamente crítico das motivações e métodos do papa: “Pio não só precisava de dinheiro para sobreviver, mas a Igreja também precisava de um exército profissional para proteger o pouco que restava” após a perda dos Estados Pontifícios.
“Os pobres e sem instrução foram induzidos a doar através de histórias de que os inquisidores italianos haviam acorrentado o papa a uma parede na prisão. Toda uma fraude que até vendeu amostras de 'palha sagrada' do chão da cela inexistente”, escreve Posner. "Os católicos de diferentes países competiram entre si para ver quem poderia arrecadar mais dinheiro". O papa enviava fotos, títulos e bênçãos assinados aos maiores doadores.
A partir da década de 1880, o papa Leão XIII começou a investir o dinheiro do Óbolo de São Pedro em imóveis romanos para proporcionar um melhor retorno, isso conseguiu estabilizar as finanças do Vaticano. Mas as doações para o Óbolo de São Pedro caíram durante a Grande Depressão e permaneceram baixas durante a Segunda Guerra Mundial. O total anual subiu para US$ 15 milhões sob o papa João XXIII, mas novamente caiu para US$ 4 milhões na época da morte do papa Paulo VI, em 1978. Em 1992, mais da metade do papado de João Paulo II, o fundo anual havia subido para US$ 67 milhões. O Óbolo foi ressuscitado nos primeiros anos dos papados de Bento XVI e Francisco. Tanto as condições econômicas quanto a percepção pública do papado, em outras palavras, desempenharam um fator no sucesso do Óbolo de São Pedro – um indicador um tanto ameaçador para o Vaticano, já que a Igreja enfrenta escândalos contínuos em torno de abusos sexuais e improbidade financeira.
Após o ano de 2000, o Óbolo de São Pedro deixou de ser um fundo inteiramente em dinheiro trocado, e o Vaticano começou a permitir pagamentos com cartão de crédito e transferências bancárias como contribuições para o fundo. Também se incentivam as doações on-line.
A controvérsia
De acordo com o Wall Street Journal, "não mais de um quarto das contribuições anuais do Óbolo de São Pedro está disponível para investimentos, depois que a maior parte é gasta nos custos operacionais do Vaticano, de acordo com as pessoas familiarizadas com o fundo". (Nenhuma fonte é identificada no artigo, embora a política do Vaticano frequentemente exija que os clérigos evitem ser nomeados como fontes). Isso contrasta notavelmente com as diretrizes gerais para as instituições de caridade e organizações sem fins lucrativos em todo o mundo, onde os custos "indiretos" são examinados por grupos de fiscalização e especialistas em prestação de contas do setor. Por exemplo, o Better Business Bureau nos Estados Unidos recomenda que uma organização sem fins lucrativos gaste "pelo menos 65% de suas despesas totais em atividades do programa".
O Charity Navigator, um importante avaliador de instituições de caridade com sede nos EUA, elogiou a Fundação Rotary do Rotary International por gastar 90,6% de seu total orçamentário no ano passado com programas e serviços que são sua principal missão. "Nossos dados mostram que sete das 10 instituições beneficiadas que avaliamos gastam pelo menos 75% de seu orçamento nos principais programas e serviços que oferecem. E nove em cada 10 gastam pelo menos 65%”, explica o Charity Navigator em suas métricas de desempenho de eficiência financeira. “Acreditamos que aqueles que gastam menos de um terço de seu orçamento em despesas com programas simplesmente não estão cumprindo suas missões. As instituições de caridade que demonstram tal ineficiência bruta recebem 0 pontos e uma classificação de 0 estrelas por sua saúde financeira”.
Porém, a Santa Sé é realmente comparável a uma instituição de caridade americana ou tradicional sem fins lucrativos? Rick Garnett, professor de direito da Universidade de Notre Dame, criticou fortemente o artigo ao comparar maçãs com laranjas. "Operar a Santa Sé – que supervisiona a maior empresa de caridade da história da humanidade – custa dinheiro, e os católicos devem estar dispostos a contribuir para pagar esses custos", tuitou Garnett na quarta-feira, acrescentando que "não admitir que o papa use as contribuições para pagar os custos da Igreja é significativamente análogo a não permitir uma instituição de caridade usar as contribuições para pagar os gastos administrativos”.
Além disso, o papa Francisco pode ser o primeiro papa em muitos anos a abordar os problemas associados ao Óbolo de São Pedro. Austen Ivereigh, um biógrafo papal e jornalista que escreveu para a América, observou em seu recente livro Pastor ferido que, meses depois de sua eleição em 2013, “Francisco criticou o que ele chamou de mentalidade nouveau riche, uma cultura de auto-direito e descuido com os custos que devoraram a receita do óbolo de São Pedro, que deveria ser usado pelo papa para ajudar os necessitados, não para suprir déficits orçamentários”.
Ivereigh também apoia a gestão do cardeal George Pell, a quem Francisco nomeou para limpar as finanças do Vaticano, por introduzir "normas profissionais de contabilidade, bem como orçamentos oportunos e confiáveis" ao Vaticano. (O cardeal Pell, que foi condenado por acusações de abuso sexual em Melbourne em abril de 2019, está preso na Austrália. Atualmente está apelando a sentença de sua condenação). Embora o desperdício financeiro tenha sido reduzido até certo ponto, Ivereigh observa que, em 2017, o cardeal Pell reclamava que “a porção do Óbolo de São Pedro usada para subsidiar o déficit ainda era alta demais”.
Os projetos que o Vaticano anuncia como "trabalhos realizados" pelo fundo em 2019 incluem uma doação de 100 mil euros para ajuda humanitária albanesa após o terremoto de 2019 naquele país; outra doação de 100 mil euros à Caritas Hellas Grécia para apoiar requerentes de asilo e refugiados; a renovação e expansão de um hospital infantil na República Centro-Africana; uma doação de US$ 50 mil para ajudar os sobreviventes dos dois terremotos de 2015 no Nepal; uma doação de US$ 500 mil para apoiar os migrantes no México; 100 mil euros para as populações afetadas pelas inundações no Irã; 150 mil euros para apoiar os devastados por um ciclone que atingiu Moçambique, Zimbábue e Malawi; e US$ 100 mil para os sobreviventes do terremoto de 2018 na Indonésia.
Devido às revelações de abuso sexual, bem como aos recentes escândalos financeiros mencionados acima, o Vaticano deverá receber menos fundos no próximo ano, embora o Óbolo de São Pedro continue sendo o principal veículo para o papa fornecer ajuda humanitária.
Publicado originalmente por América.
Tradução: Ramón Lara
*Colleen Dulle é assistente de produção de áudio e vídeo na América. James T. Keane é editor sênior da América.

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