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Há no Brasil uma parcela desprezível de gente que não conseguiu assimilar e aceitar a diversidade

Implantou-se na raiz da cor negra a ideia de coisa ruim e isso se transplantou, em virtude da maledicência humana, para a raça negra (Chiamaka Nwolisa/ Unsplash)
Afonso Barroso*
Havia no Colégio São João, de São João del-Rei, internato da congregação salesiana, um livrinho para leitura meio que obrigatória dos alunos. Tinha por título O jovem instruído e continha, além de ensino religioso, lições de comportamento e civilidade. Me lembro de uma página com o título Página negra, impressa em negativo, ou seja, com fundo preto e letras vazadas. Nela se lia, em letras bem grandes, uma relação de procedimentos inconvenientes como cuspir ou escarrar no chão, assoar-se sem lenço e outros. Pergunto eu a mim mesmo: esse título, Página negra, evidenciaria uma forma de racismo? Por que tinha de ser negra a página da falta de educação?
Pulo do livrinho salesiano para a poesia caipira do violeiro Tião Carreiro e ouço numa toada satírica o verso “A coisa tá feia, a coisa tá preta”. Faço então a mesma pergunta: por que preta? Quer dizer que preto é feio?
Como hoje estou a fim de dar pulos, vou pular para um verbo muito usado no linguajar cotidiano: denegrir. Significa tornar negra ou manchar a reputação de alguém, provocar desprezo. E pergunto: será esse verbo uma demonstração de racismo do nosso vocabulário?
Dou mais um pulo, agora para a linguagem do dia a dia. Ainda se diz, para designar uma pessoa da raça negra, que é um homem ou uma mulher “de cor”. Infere-se aí, embora talvez não seja essa a intenção, a ideia de racismo invertido. O branco, de acordo com essa denominação, é a raça incolor, portanto desprezível. Na linguagem dos povos indígenas, o cara-pálida.
Esses exemplos não são, afirmo eu, nenhuma demonstração ou manifestação de racismo. Não. O que acontece é que se implantou na raiz da cor negra a ideia de coisa ruim, desprezível, medonha, e isso se transplantou, em virtude da maledicência humana, para a raça negra, o que estimulou o racismo existente aqui e acolá no país. A escuridão apavora, é verdade, mas isso não tem nada a ver com a cor escura das pessoas.
Não se pode dizer que o racismo ou preconceito de cor não existe no Brasil. Existe sim, mas não é algo nem de longe semelhante ao que se praticou e ainda se pratica em outros países, especialmente nos Estados Unidos.
Quando falamos desse assunto, é preciso lembrar o sociólogo Gilberto Freyre. Segundo ele, “no Brasil, ninguém pensaria em ter Igrejas apenas para brancos, e nenhuma pessoa pensaria em leis contra os casamentos inter-raciais ou em barrar negros nos teatros ou áreas residenciais”. Para ele, há entre os brasileiros “um espírito de fraternidade humana mais forte do que o preconceito de raça, cor, classe ou religião”.
Fecho aspas e digo que não é bem assim. Há no Brasil uma parcela desprezível de gente que não conseguiu assimilar e aceitar a diversidade de modo geral, e especialmente de raças. Notícias nada fake dão conta da existência de clubes sociais e certos estabelecimentos que não admitem o ingresso de negros. E há brancos capazes de escorraçar uma pessoa ”de cor” que se atreva a entrar em determinados ambientes.
Essas pessoas talvez não se enquadrem na categoria dos bandidos. Mas são marginais, sim, no sentido de que vivem à margem do bom senso, da boa educação e do espírito de fraternidade de que nos falou Gilberto Freyre.
*Afonso Barroso é jornalista, redator publicitário e editor
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