sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A Máquina e o Jardim

O que devemos ter ou fazer para evitar que a Máquina nos roube o coração?


(Foto: Ilustração de Max Velati)
Por Max Velati*

Na sexta-feira passada, contei aqui sobre um jantar onde me serviram para digerir algumas questões importantes relacionadas aos temas desta coluna. Prometi então que hoje escreveria sobre a questão principal levantada pelos convidados. 

O que devemos ter ou fazer para evitar que a Máquina nos roube o coração? 

Para o leitor que está chegando agora explico que nesta coluna chamo de Máquina todas as armadilhas escondidas sob o nome de Civilizacão, todos os artifícios do Progresso desenhados para nos ferir na alma sem que percebamos.

Há cerca de 200 mil anos, o Homo erectus já estava extinto e o passo seguinte veio com uma geração dotada de cérebros maiores, um parente que há 75.000 anos já estava bem estabelecido na Europa. Os primeiros vestígios desta nova etapa da evolução foram encontrados em 1856, na Alemanha, no Vale do Rio Neander. Por essa razão este antepassado recebeu o nome de Neanderthal. Sabemos que dominaram o fogo e eram bons caçadores, além de precisos na fabricação de ferramentas. Certamente estas qualidades foram essenciais para a sobrevivência, mas há algo que torna este grupo realmente especial: eles foram os primeiros a enterrar seus mortos. A simples idéia de proteger o cadáver contra os carniceiros como sinal de afeto e respeito já seria um grande avanço, mas os pesquisadores encontraram também flores e alimentos cuidadosamente dispostos nos túmulos. Numerosos vestígios indicam ainda que este grupo já tinha uma percepção estética e pela primeira vez surgem artefatos com sinais de decoração. Parecem ter encontrado também um sentido especial na vida, pois inauguraram na História um forte senso social e um comportamento ritual, como indicam objetos cerimoniais cuidadosamente preparados. Todos estes sinais mostram a presença de uma semente no espírito que produziria mais tarde muitos frutos, dentre eles a Filosofia e a Religião. Nosso parente Neanderthal descobriu graças a esta semente que a vida é um mistério, que a morte é imprevisível, que os ritos nos consolam e que devemos buscar a beleza em tudo o que fazemos. Todas estas conquistas ocorreram pela combinação de dois ingredientes poderosos: o espanto e a reverência. Esta combinação é tão fértil que os filósofos gregos perceberam o seu poder e deram a esta mistura de susto e admiração o nome de thauma.

Thauma significa que carregamos desde o Homem de Neanderthal a capacidade de ultrapassar os limites da existência individual e um talento natural para a bela obra. Thauma é um nome grego que batiza um esforço heróico de transcendência, um ato de coragem que consiste em reconhecer - mesmo sem qualquer fé religiosa - que o universo é vasto e profundo, que a vida é uma obra de arte e infinitamente misteriosa nos seus desdobramentos. 

Thauma é a nossa proteção contra a Máquina. 

Para entender isso basta olhar ao redor e perceber como é a vida sem o espanto e a reverência. Tudo passa a ser pequeno, insuficiente, já conhecido e descartável. A vida é banal, sem valor e a reverência foi destituída de seus atributos até se transformar em humilhação. Quando perdemos a thauma o universo se reduz ao tamanho da Máquina e a vida trará apenas as supresas que a Máquina permitir. 

O espanto-reverência neutraliza magicamente a percepção venenosa de que não há nada além da Máquina. Thauma restaura a nossa visão de que o Universo é eternamente surpreendente e a vida - tanto a nossa quanto a dos outros - é uma aventura magnífica e delicada e que exige todos os tipos de cuidados, pois por muito pouco tudo escapa ao nosso pequeno controle.

A Máquina odeia a thauma. Mais do que isso, ela teme esta pequena semente e por isso é preciso cultivá-la. Os primeiros frutos serão de discernimento, uma capacidade que a Máquina quer ver atrofiada e inútil. Do discernimento virá talvez a prática viruosa e um tipo de contemplação rico de significados. Tudo isso fará surgir um pequeno jardim em meio ao concreto, flores entre as engrenagens, frutos sob os tentáculos de aço. Coloque cuidadosamente a semente de thauma neste jardim e cuide dela todos os dias. Refresque a sua capacidade de se admirar com a pequenez e a grandeza do mundo; revolva gentilmente o seu talento para reverenciar o que está além, coloque beleza em tudo o que fizer. Este jardim é seu, esta semente é sua e se cuidar dela nem mesmo os radares mais sofisticados da Máquina saberão que ela existe em você.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.

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