Ilustração mostra negro sendo açoitado pelo senhor de escravos: olhar acostumado à injustiça.
Por Tarcísio Maciel Chaves de Mendonça
Bibliografia
ALENCAR, José. Cartas a Favor da Escravidão. Organização de Tâmis Parron. São Paulo: Hedra, 2008.
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil Mortos no Maior Hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editora, 2013.
BRUM, Eliane. A Vida que Ninguém Vê. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2012.
Três livros chamaram-me a atenção para a questão do olhar. São eles: Cartas a Favor da Escravidão, A Vida que Ninguém Vê e Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil mortos no maior Hospício do Brasil. Quando se estabelece um diálogo entre essas três obras, fica fácil perceber que nosso “olhar” é condicionado por uma época. Isso nos impede de enxergar absurdos que ocorrem debaixo de nossas vistas. Vejamos:
Em “Cartas a Favor da Escravidão”, reúnem-se escritos que José de Alencar publicou advogando a continuidade do trabalho escravo. Alencar lançou argumentos tentando demostrar que a escravidão não deveria acabar por um ato de imposição do governo imperial. Conclama o Imperador a não ceder às pressões internacionais que reclamavam a libertação dos cativos. Chega a afirmar que “a escravidão é um fato social, como são ainda o despotismo e a aristocracia; como já foram a coempção da mulher, a propriedade do pai sobre os filhos e tantas outras instituições antigas” . Alencar reconhece que a escravidão caduca, mas que a ela ainda estão presos graves interesses de um povo. É o quanto basta, em sua visão, para que ela mereça o respeito do Imperador.
É interessante como uma época é capaz de condicionar nosso “olhar”. Então um indivíduo pode intitular-se humanista, dizer que comunga de valores cristãos e, sem perceber qualquer contradição, sustentar a existência, entre nós, do trabalho cativo.
Uma forma de genialidade seria evidenciada por aqueles que conseguem, mesmo mergulhados em seu tempo, manter cristalino seu olhar e enxergar as contradições e injustiças, avançando suas reflexões para além de sua época.
Machado de Assis foi uma das poucas mentes que refletiram para além de seu tempo. Viu o que a maioria de seus pares não enxergavam. Em sua crônica “Escravo Pancrácio”, publicada em 19.05.1888, Machado nos alertava que não bastava a abolição da escravatura. A libertação dos negros realmente viria quando não houvesse mais espaços para “petelecos” como os que Pancrácio levou de seu ex-senhor, mesmo após ser alforriado. A crítica de Machado, vinda na forma de uma fina ironia, não deve ter sido percebida por muitos de seus contemporâneos. Sua crítica, infelizmente, mantém-se atualíssima.
Creio que Eliana Brum é dotada dessa capacidade de “olhar” para onde ninguém mais olha. Ela nos convida a treinar nosso “olhar” para enxergarmos aquilo que está a nosso alcance e ignoramos. No livro “A vida que Ninguém vê”, a autora conta a história de pessoas tornadas invisíveis por nossa sociedade. Descobriu belezas e tristezas. Das histórias contadas, das vidas que ninguém vê, a que mais me impressionou foi “Sinal Fechado para Camila”.
A história de Camila me chamou a atenção porque tem o mérito de nos colocar sentados no banco dos réus bem ao lado de José de Alencar. Tratava-se de um CRIANÇA (essa palavra deve ser gritada) que teve os sonhos e, ao final, a vida subtraída. Pedia dinheiros nos sinais de uma grande cidade brasileira.
Ninguém em sã consciência fará hoje um discurso a favor da escravidão. Todavia, assistimos à manutenção de uma grande parcela da população na situação de mais absoluta invisibilidade. Exatamente como ficaram os escravos após a Lei Áurea. Perambulavam pelo campo sendo expulsos de fazenda em fazenda até que se alocaram em cortiços. Enquanto isso, os europeus chegavam para ocupar seu lugar como força de trabalho, agora remunerada.
Tornar-se invisível aos olhos de um meio social significa ser invisível aos olhos das políticas públicas mais elementares. As políticas públicas, ou a falta delas, refletem as injustiças verificadas pontualmente no cotidiano. Porque não olhamos para Camila, também não nos indignamos com o sucateamento da educação e saúde pública. Porque não olhamos para Camila, não nos damos conta do apartheid verificado a partir do abismo posto entre a educação pública e privada.
O “Holocausto Brasileiro – Vida, Genocídio e 60 mil mortes no maior Hospício Brasileiro” é uma obra de Daniela Arbex. Foi prefaciado pela já citada Eliana Brum. Mostra como exterminamos diversas classes de “socialmente indesejáveis” no manicômio de Barbacena. “Tratamos” indivíduos, desprezando completamente qualquer parâmetro de dignidade. Tivemos um campo de concentração, destinada a eliminar os diferentes, bem próximo de Belo Horizonte. Tudo isso sob nossos olhos e tão longe de nossa visão.
Nossos olhos não estão imunes a névoas. A questão é treinar o nosso olhar para reconhecer injustiças naturalizadas.
Será uma mera coincidência o fato de os clientes do sistema penal serem indivíduos de baixa condição financeira? Será puro acaso o fato de nossa defensoria pública ser tão deficitária (em que pese a reconhecida competência pessoal de seus membros)? Devemos, em que pese nosso desejo, acreditar que nosso país não é racista? Por que os professores da rede pública recebem tão pouco? Para onde foram as pessoas em situação de rua que encontrávamos com facilidade em Belo Horizonte?
A questão é que não escolhemos nossa herança. Todavia, Derridá nos alerta que podemos escolher o legado que deixaremos às gerações futuras. É necessário enfrentar e exorcizar nossos fantasmas. Para tanto, é necessário aceitar o convite de Eliane Brum e calibrar o nosso olhar.
ALENCAR, José. Cartas a Favor da Escravidão. Organização de Tâmis Parron. São Paulo: Hedra, 2008.
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil Mortos no Maior Hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editora, 2013.
BRUM, Eliane. A Vida que Ninguém Vê. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2012.
* Tarcísio Maciel Chaves de Mendonça é professor de Processo Penal da Faculdade Dom Helder Câmara, advogado e doutorando em direito, com ênfase em ciências penais, pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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