quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Quem tem medo da solidão?

A maturidade exige que sejamos capazes de aceitar a solidão como parte da vida emocional e mental.

A sociedade, barulhenta e espetaculosa, não suporta a solidão.
Por Reinaldo Lobo*

A capacidade de estar só é uma conquista do amadurecimento humano. Começa na infância, quando a criança bem pequena pode se entreter sozinha mesmo na presença de quem cuida dela. Mas a nossa sociedade atual, barulhenta e espetaculosa, não suporta bem a solidão. Assim como teme o silêncio. A introspecção, a ausência de ruídos e um certo grau de isolamento são mal vistos. No máximo, são recomendados na forma de "meditação", como remédio para o "stress da vida moderna".

No cinema, o indivíduo solitário demais, quieto,  é descrito como um esquisito, suspeito e quase sempre acaba se revelando um "serial killer". O convite geral é paradoxal: todos devemos ter identidade própria, individualidade, mas não tanto que possamos nos afastar. È preciso entrar para o convívio, agrupar-se, socializar-se na família e nas empresas. 

Vivemos em sociedades de massas, de consumo em massa,  de participação nas redes sociais e ligados quase todos nos meios de comunicação...de massas. Um escritor genial, Elias Canetti, lembrou que nós lutamos desesperadamente contra o medo que temos do contato com o outro e, por isso mesmo, invertemos essa tendência mergulhando nas multidões, acotovelando-nos em manifestações coletivas, shows, rituais, espremendo-nos e perdendo a identidade no meio das torcidas e das turbas. Diz ele no seu brilhante ensaio "Massa e Poder": 

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Ele quer ver aquilo que o está tocando; quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao menos, de classificá-lo. Por toda a parte, o homem evita o contato com o que lhe é estranho. À noite, no escuro, o pavor ante o contato inesperado pode intensificar-se até o pânico".
O antídoto contra esse medo: "Somente na massa é possível ao homem libertar-se do temor do contato.Tem-se aí a única situação na qual esse temor transforma-se no seu oposto. E é da massa densa   que se precisa para tanto, aquela na qual um corpo comprime-se contra o outro... Quanto mais energicamente os homens se apertam uns contra os outros , tanto mais seguros eles se sentirão de não se temerem mutuamente. Essa inversão do temor do contato é característica da massa", diz Canetti. 

Estar entre a massa é a defesa contra nosso temor da presença do outro. A fobia humana ao contato produz um exemplo extremo, condensado, de grupo ao qual devemos nos integrar e até nos espremer, em meio a uma espécie de contato total. Quem aceita viver sem o contato, na solidão do próprio corpo e da própria mente, pois não o teme tanto e nem precisa dele, vira imediatamente suspeito. 

Um paradoxo notável da mente humana é que precisamos muito do outro para nos construirmos como seres maduros. Precisamos de mãe e de pai ou, pelo menos, de alguém que cuide de nós em nossa longa infância. Ao mesmo tempo, necessitamos de independência e autonomia e a conquistamos por gradual separação dos pais. Nós nos identificamos com nossos pais, nos separamos simbolicamente deles e , espera-se, viramos adultos autônomos.

A autonomia é sempre relativa, mas necessária para sermos responsáveis por nossos medos, inclusive o de contato com o outro. E também para sermos responsáveis por nossas vidas, decisões e escolhas profissionais e amorosas. Pela nossa liberdade, enfim.

Hoje não é fácil ser livre. A sentença da sociedade é  que só poderemos ser felizes se estivermos em relação com o outro ou com os  outros. Há um enorme preconceito em relação à solidão, talvez por um exagerado medo do vazio contemporâneo e, ao mesmo tempo, medo do contato excessivo. Algumas pessoas sofrem desesperadamente por não ter um companheiro ou uma companheira. É como se a solidão fosse uma condenação ao fracasso existencial. Ao temor da depressão pelo sentimento de perda soma-se a condenação social: é um horror ser "solteirona" ou um "solteirão".

Sabe-se que muitas mulheres e vários homens optam hoje pela profissão, pelo trabalho criativo, em lugar de casar e ter filhos, mas isso ainda é visto como exceção. A regra é conviver, integrar-se, pertencer a um grupo, ser "especial" e "singular", mas dentro de uma tribo identificável, que substitua os pais de origem e dê conforto emocional e um mínimo de segurança.

A própria psicanálise e os psicanalistas compartilham um pouco desse preconceito em relação à solidão. Desde os tempos de Freud e, mais particularmente, a partir do surgimento da escola psicanalítica da "relação- de- objeto", iniciada com Melanie Klein, houve uma mudança de ênfase da análise do indivíduo para a relação entre  as pessoas. Muitos psicanalistas atuais, talvez a maioria, são de opinião de que os relacionamentos pessoais íntimos são a principal fonte da felicidade humana.

A psicanálise passou por grandes mudanças no período que vai das últimas década do século XX até hoje. Uma das principais foi o crescimento da ênfase na relação entre o paciente e o analista. Ela insiste atualmente em afirmar que a principal característica do tratamento analítico é a  análise da transferência e da contra-transferência, isto é, da reação emocional do paciente diante do analista e, por outro lado, da reação emocional do analista em face  do paciente.

Nos primeiros tempos da psicanálise, a ênfase era mais enfocada no desenvolvimento psicossexual do paciente e na sua constituição psíquica do que na análise da transferência. O paciente  era visto como um indivíduo separado e sua reação emocional ao analista era considerada secundária e, por um período, até como um obstáculo inicial à análise. 

Nesse tempo, uma pessoa seria razoavelmente saudável se estivesse desfrutando de uma vida sexual saudável, seja lá o que isso significava, e estivesse trabalhando de modo produtivo. Hoje, os analistas dirigem seu olhar para a capacidade de manter relações intersubjetivas, isto é, entre duas mentes, e costumam dizer que o trabalho enfoca a "dupla analítica". 

O indivíduo solitário não tem lugar nesse novo espaço psíquico que pressupõe a "relação". Não por acaso, discute-se tanto a relação hoje, dentro e fora de uma análise. Existe uma suposição de que a solidão é um sinal de narcisismo. E o preconceito em relação à palavra narcisismo pode ser ainda maior do que qualquer significado de solidão. Solidão até dá uma certa compaixão nas pessoas. Narcisismo é um palavrão, pois costuma ser entendido num sentido moral, como egoísmo, orgulho, auto-suficiência e desprezo pelo outro.

Ora, gostar de si mesmo ou da imagem construída de si, é algo que todos sentimos de uma forma ou de outra. Até almejamos isso, sob a forma de autoestima. Narcísicos todos somos, o problema é o excesso deformante, a suscetibilidade exagerada e a onipotência enlouquecedora. Para dar conta desse problema, uma psicanálise bem atual divide o narcisismo em dois tipos: um narcisismo de vida e outro destrutivo Portanto, o narcisismo também pode ser visto como algo positivo, ligado á vida, às artes, à criatividade e à exibição de qualidades reais e úteis. 

Algumas personalidades mais criativas da humanidade, gênios, foram personalidades solitárias: Descartes, Kant, Newton, Locke, Pascal, Spinoza, Leibniz, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard e Wittgenstein. Eram solteiros, alguns tiveram casos passageiros com mulheres ou outros homens, mas se realizaram fora até mesmo de relações conjugais estáveis ou casos duradouros. Não eram humanos? Não faziam parte da "normalidade"? Viveram, de fato, a maior parte de suas vidas sozinhos. Outros exemplos da literatura, da música e da pintura não faltam. Mereceriam todos a execração pública ou a consagração histórica por sua contribuição à humanidade?

Um desses grandes criadores, Schopenhauer, dizia que somos todos como porcos espinhos: se ficamos sozinhos sentimos frio e se nos aproximamos demais, nos espetamos. Mas a maturidade exige que sejamos capazes de conviver com esse paradoxo e aceitar que a solidão, quando já temos dentro de nós figuras de pai e de mãe bem guardados, é parte necessária da vida emocional e mental. Até porque a solidão, queiramos ou não,é inevitável.
*Reinaldo Lobo é psicanalista, Doutor em Filosofia, jornalista e tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário