quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A mídia e a liberdade

Nas sociedades livres, também existem os "comissários" de plantão, sobretudo na mídia.



A mídia das sociedades ocidentais impõe a auto-censura a si mesma. (Foto: Arquivo)
Por Reinaldo Lobo*

A mídia canonizou Nelson Mandela. Nada pior para a reputação de um político revolucionário do que a unanimidade. Madiba, como era chamado por seu povo, pegou em armas para lutar contra a elite mais racista do mundo.  Foi classificado como terrorista, inclusive pelo FBI e a CIA, foi torturado  e ficou na cadeia por 27 anos. Não foi vingativo e teve um gesto de grandeza humana ao impedir um banho de sangue contra a minoria branca na África do Sul. Mas daí a reduzí-lo apenas a uma espécie de santo padroeiro da conciliação é uma operação muito bem sucedida de mistificação. E isto foi, em grande parte, uma obra dos meios de comunicação internacionais.

Não pensem que se armou uma operação, programada e decidida de forma totalmente consciente por editores e jornalistas que se comunicariam em várias partes do mundo. Nada disso. Já existia instalado um sistema mundial que funciona assim automaticamente, por ideologia e preferências políticas. Tornar Nelson Mandela "bonzinho" foi parte do efeito ideológico desse sistema comandado por corporações jornalísticas que controlam as TVs, rádios, jornais,  revistas e, agora, até mesmo na internet.

A finalidade oculta, em grande medida inconsciente, era amenizar o caráter revolucionário de Mandela, ignorar sua aliança com o Terceiro Mundo e o seu pragmatismo político que o uniu até mesmo ao líbio Muammar Khadafi, aquele monstro midiático que financiou em parte o partido de Madiba - o CNA, Congresso Nacional Africano. E isto para torná-lo  um modelo representacional do tipo religioso, como Gandhi ou Martin Luther King, mais palatáveis e pedagógicos, por exemplo, para a opinião pública norte-americana.


A  conotação ideológica da mensagem era: "não se revoltem, não queiram o mal das elites brancas ocidentais, muitas vezes racistas, não façam como os muçulmanos radicais que, desesperados, não nos perdoam por nossa arrogância e poder militar, pegam em armas contra nós, justamente contra nós, cujos valores são superiores aos deles e queremos ensiná-los e introduzí-los nas virtudes do cristianismo!".

É um perigo falar dessas questões, pois logo é lançada a acusação de que se está questionando a liberdade de imprensa. Mas, na verdade, o  que precisa ser posta em discussão é a distorção que suprime a liberdade de informação e a torna unânime, dirigida seletivamente. O objetivo é democratizar e ampliar ainda mais a liberdade de informar. Entre nós existe a liberdade para as empresas, às vezes monopólios, em relação ao poder do Estado, mas não existe liberdade no interior  das empresas em relação a quem detém o poder econômico. Esta é a questão. A noção de liberdade ideológica ressalta o poder do Estado e suprime ou nega a existência do poder econômico sobre o indivíduo e os grupos sociais.

Noam Chomsky, o lingüista norte-americano e militante internacional em defesa dos Direitos Humanos, foi quem melhor definiu, a meu ver, o "clero secular" formado pelos ideólogos e jornalistas da mídia privada que, com raras exceções, fazem esse jogo de justificação do poder das corporações e da oligarquia "liberal" do Ocidente. 

O fenômeno que ele descreve é sutil e não pode ser reduzido a uma única dimensão. Fala de uma espécie de auto-censura imposta a si mesma pela mídia das sociedades livres ocidentais, no sentido de orientar ideologicamente as grandes massas de espectadores e de leitores do mundo todo. Isso é feito de modo voluntário ou automático, mas constitui uma submissão aos empresários poderosos e aos governos ocidentais que determinam ou controlam a mídia, seja diretamente , seja por meio de assessorias, lobbies ou pela educação dos jornalistas nessa direção. A chave para entender esse processo é uma espécie de submissão consentida, interessada, que gera a auto-censura. É o que sedimenta e mantém o clero intelectual laico da imprensa.

O termo "clero secular" Chomsky foi buscar na obra do filósofo liberal britânico e historiador das idéias Isaiah Berlin, que se referia no século passado aos intelectuais comunistas da falecida União Soviética que defendiam a religião do Estado e os crimes do poder. Com certeza, nem todos os intelectuais soviéticos associaram-se ao clero secular. Havia, lembra, Chomsky, os "comissários", que defendiam e administravam o poder, e os "dissidentes", que desafiavam o poder e denunciavam seus crimes.

O curioso é que, nas sociedades ocidentais, nós honrávamos os dissidentes russos, com justa razão, e condenávamos obviamente os comissários. Já para o poder soviético era exatamente o  contrário, também obviamente. Honravam-se os comissários e se perseguiam os dissidentes.

Dirá Chomsky que também nas sociedades livres existem os "comissários" de plantão, sobretudo na mídia, mas a diferença é que aqui não existe a censura oficial do Estado totalitário. Contudo, existe uma censura mais sutil e generalizada, na forma de auto-censura considerada "critérios jornalísticos". Ela está internalizada na mente de cada jornalista ou membro da mídia. E também há os "dissidentes", como o próprio Chomsky, que fazem questão de apontar os crimes do militarismo e da injustiça econômica no império norte-americano, seu próprio país.  

No ocidente, os dissidentes nem sempre são mortos, apenas em casos excepcionais em que ferem interesses poderosos. Muitas vezes, os dissidentes são até festejados por sua ousadia e apresentados como exemplo de que  existe efetivamente liberdade de imprensa. Eles atendem a uma parte da opinião publica, a que discorda, e formam igualmente uma área de mercado, o que convém ao sistema capitalista. Mas muitas vezes precisam refugiar-se na imprensa alternativa e, agora, entre os hackers e as redes sociais. Dificilmente arranjam bons empregos e podem ser, com freqüência,  perseguidos. 

Os casos de Julian Assange, que revelou papéis secretos da diplomacia dos EUA, e de Edward Snowden, que divulgou a espionagem norte-americana sobre outros países e governantes, são uma mostra de que ser dissidente nas sociedades livres ocidentais também pode ser bem perigoso. Como nos casos soviéticos do passado, eles violaram as leis vigentes. São caçados como traidores.

Na sociedade norte-americana, formam-se consensos que atendem até mesmo aos interesses do governo, quando os dissidentes se confundem ou se aproximam dos inimigos políticos. Em nome de um desses consensos, os cineastas de Hollywood foram convocados depois de 11 de setembro de 2001 a realizar filmes patrióticos e bélicos contra os radicais árabes. E muitos atenderam. Basta ir ao cinema, ligar a TV ou baixar na internet para ver.

A mídia associou-se também ao impacto aterrorizante dos atentados junto à opinião pública e criou uma novilíngua: os árabes viraram "terroristas", assim como todos os  presos de Guantánamo, em relação aos quais não se questiona se têm direitos ou não, pois estão no limbo reservado aos inimigos da humanidade. Quem tiver opinião dissidente em relação a esse assunto é "traidor" e quem informar segredos dos governos que "combatem o terrorismo", também. Preso político fica sem direitos e recebe o nome de terrorista. Dissidente ganha a acusação de traidor da pátria.

Uma das piores formas de servidão é a consentida. Chomsky tem razão quanto a isso. A "servidão voluntária" pode ser para os jornalistas e a imprensa uma ilusão que nada tem a ver com "má fé". No entanto, contribui para fechar o espaço de liberdade. Contra essa ilusão, é preciso estar atento e forte, como diz a música de Caetano.
* Reinaldo Lobo é psicanalista e jornalista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com.

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