A velha Noite Feliz da nossa infância tornou-se uma noite a ser suportada, não mais celebrada.
Flagrante de uma Noite Feliz onde não existem noites felizes. (Foto: Arquivo) |
Por Marco Lacerda*
Houve um tempo em que Natal era a celebração do aniversário de um menino nascido há dois mil anos, que muita gente ao redor do planeta acreditava ser o filho de Deus. Era um tempo em que o mundo parecia nos pertencer por completo e nossa maneira de comemorar era armando um presépio no lugar mais nobre da casa.
O resultado era um prodígio de licenças poéticas: o menino Jesus era maior que o boi, as casinhas encarapitadas nas colinas de papel machê eram maiores que a Virgem, tinha um trenzinho de plástico na paisagem bucólica de Belém, um ursinho de pelúcia grudado no galho de uma árvore e um guarda de trânsito orientando um rebanho de ovelhas nas ruas de Jerusalém. Em cima de tudo tinha uma estrela de papel dourado a indicar aos Reis Magos o caminho da salvação.
Era mambembe, desengonçado, mas parecia conosco. Os brinquedos que ganhávamos eram piorra, pião, bola de meia, boneco de pano, e acreditávamos que eram trazidos, não pelos reis Magos, como reza a tradição, mas pelo Menino Jesus. Íamos dormir mais cedo, no dia 24, para os presentes chegarem mais depressa.
Não demorou até que alguém se apressasse em revelar a verdade. A decepção foi imensa. Não só porque acreditávamos que era o Menino Jesus quem trazia os brinquedos, mas porque queríamos continuar acreditando assim. Nossa infância acabou no dia em que soubemos essa verdade inútil.
Logo deixamos de acreditar também que são as cegonhas que trazem os bebês do céu e que estrelas do mar são estrelas cadentes que saltam do firmamento para animar a silêncio dos mares, onde as ostras vivem fechadas em si mesmas e os peixes morrem de solidão.
O Menino Jesus foi destronado e em seu lugar nos mandaram um velho vestido de vermelho com longas barbas brancas e o nariz vermelho de porres homéricos. O nome do velho era Santa Claus, mas ficou conhecido entre nós como Papai Noel. Montado num trenó cheio de brinquedos importados, puxado por alces voadores, o usurpador rasgou nossa noite tropical sob uma fantástica tempestade de neve. O nascimento de Jesus transformou-se em um num negócio multinacional.
O Natal virou um mês de consumismo frenético em que incorporamos às nossas vidas uma cultura de contrabando que inclui neve artificial, peru recheado, frutas esquisitas e ridículas canções traduzidas do inglês. A Noite Feliz virou um pesadelo. As crianças não podem dormir com a casa cheia de bêbados perseguindo as mulheres de outros bêbados apagados nos sofás da sala.
A noite de paz tornou-se ocasião de encontro de gente que apenas a aproveita para por em dia gestos esquecidos durante o ano: dar um prato de comida ao mendigo da esquina, convidar para a ceia a vizinha que ficou viúva ou o tio esclerosado que ninguém quer por perto. Virou uma noite de felicidade compulsória em que presenteamos para sermos presenteados. Uma noite a ser suportada, não mais celebrada. Até os cristãos passaram a celebrá-la desse jeito estranho, como se desconhecessem o seu significado original.
Muita gente aderiu à festa, não por acreditar nela, mas por causa do agito, e outros porque insistem em torcer o rumo das coisas até que ninguém acredite em mais nada e sigamos todos comprando e presenteando sem motivo. Às vezes a festa acaba em tapas e tiros, mas ninguém se assusta. Como não se assusta quando as crianças, perdidas na confusão, dizem que o Menino Jesus não nasceu em Belém, mas nos Estados Unidos, onde nascem as pessoas importantes. Fomos vivendo, ou melhor, empurrando a vida, mergulhados nessa estranha letargia que nos impede de lembrar quem somos.
Aprendemos a mentir e a nos enganar. Até o dia, depois de tanta obediência cega, em que fomos acordados por aqueles aviões que pareciam vivos, chocando-se contra duas torres lá no norte, movidos por fúria assassina, e as torres desabando ao som de um coro de vozes distantes a nos dizer o quanto o mundo que inventamos é odiado. Quando chega dezembro sentimos saudade daqueles natais que nunca mais foram nossos. Ainda vamos dormir mais cedo no dia 24, mas já não temos certeza de acordar vivos no dia 25 para celebrar … o que mesmo, amigo?
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e editor-especial do Domtotal. Esta crônica foi publicada nesta revista eletrônica no Natal de 2012.
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