As novas tecnologias educaram as gerações atuais a pensar que são estrelas de uma produção cinematográfica.
(Foto: Ilustração Max Velati) |
Por Max Velati*
Deixo aqui o meu recado para as duas moças: a vida não é filme de ficção...é documentário.
Outro dia, fiquei observando no bar uma conversa entre duas adolescentes. Digo adolescentes, mas podiam já ter passado dos 24 anos. Hoje em dia é difícil contar primaveras. A conversa me chamou atenção por duas razões. A primeira é que não estavam de fato conversando; queriam falar, mas não queriam ouvir. Já escrevi aqui na Rota de Fuga sobre as conversas modernas que são monólogos e chamamos de conversa apenas porque as pessoas estão frente a frente. A segunda razão que me chamou atenção é que as poses, bocas e gestos eram estudados, medidos e calculados para provocar um efeito glamour. A simples mão erguida para chamar o garçom transformava-se em um aceno teatral. Nos detalhes via-se que agiam como duas estrelas de cinema ocupadas na cena descrita no roteiro como "duas amigas conversam animadamente". A escolha no cardápio exigia um ar compenetrado de quem está diante de um problema difícil, uma pausa no texto do personagem para uma indecisão charmosa. Escolha feita, era então o momento do sorriso sedutor para o garçom, depois para o vendedor de balas e para o mundo em geral. Entre uma frase e outra, o riso feito de sons e nenhuma alegria.
Foi uma questão de tempo até se cansarem dos monólogos e sacarem os celulares para fotos de si mesmas, do café fumegante e do pão de queijo mordido.
É possível analisar este evento apenas pelas aparências: duas moças modernas se divertindo do jeito moderno e registrando tudo com recursos modernos. Mas algo me incomodou e desde então tenho prestado mais atenção nas pessoas e desenvolvi uma tese que explica certos modismos, incluindo o "selfie", o ato de fotografar a si mesmo em situações diversas.
Minha tese é de que os recursos da tecnologia, as redes sociais, os celulares, a profusão de shows do tipo "reality"...tudo isso educou as novas gerações a pensar que são estrelas de uma produção cinematográfica. Todo mundo e cada um protagoniza o próprio filme no papel de herói ou heroína de uma superprodução. Na falta de uma audiência, basta imaginar o mundo como o público, o garçom como um admirador, o vendedor de balas como um grande fã. Na falta de uma câmera, use o celular ou a câmera do computador e...ação!... o filme ganha forma e a vida vira filme.
É mais do que saudável ser o protagonista da própria história e em certa medida devemos mesmo nos colocar no centro de nossas narrativas, mas perdemos a justa medida e as traquitanas digitais agravaram o problema. As novas gerações estrelam suas biografias desenvolvendo maneirismos que ofuscam, mas carecem de conteúdo e significado. Penso que vivem sob a crença de que o objetivo da vida é chamar a atenção. O erro de viver assim é que revelar-se ao mundo fica mais importante do que descobrir- se e induz a pensar que é mais eficiente ser um personagem do que desenvolver uma identidade.
No misticismo grego antigo havia uma doença chamada de kenodoxia. O termo descrevia uma enfermidade da alma que podia ser positiva ou negativa. Positiva se fosse o ego inflado, o "eu" que se julga objeto de admiração e centro do universo. No aspecto negativo seria o "eu" como o supremo alvo de menosprezo. Nos dois casos não havia a menor conexão com a realidade. A essência desta doença consiste em colocar o indivíduo no centro do mundo. No aspecto positivo - e eu só tenho visto casos assim - o indivíduo se vê como um herói, um gênio, um líder, um astro, um santo, um semideus. O resto da Humanidade passa a ser apenas uma legião de súditos presente unicamente para tornar a produção mais grandiosa. Em cada cena o outro é apenas um figurante.
A kenodoxia nos impede de enxergar qualquer um além de nós mesmos, nos rouba a humildade, nos cega para a realidade e nos deixa `a mercê de ilusões.
O antídoto - também batizado pelos gregos - é a gnose, o conhecimento, sobretudo o autoconhecimento. O santo remédio consiste em buscar na disciplina, no estudo, na meditação e no exercício diário da humildade a honesta percepção da realidade.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.
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