sexta-feira, 18 de abril de 2014

Duas cidades

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APESAR DE ALGUMAS SE INTITULAREM DE “MARAVILHOSAS”, CIDADES BRASILEIRAS SÃO UM DESCALABRO.

Por David Paiva*

Mesmo considerando a Sexta-feira Santa dos cristãos, não vou tratar das "duas cidades" de Santo Agostinho – a de Deus e a dos homens. As cidades de que falo são ambas terrenas, as duas meio diabólicas, resultados de processos históricos e econômicos um tanto perversos, com resultados teimosamente, duradouramente sofridos.

Não há país onde as cidades não se bifurquem em duas ou mais, basicamente separadas em áreas ricas e áreas pobres, ou “nobres” e “populares”. As áreas ricas têm mais árvores, mais flores onde canta o pardal, mais serviços e mais mulheres bonitas. As pobres têm menos ou até zero de qualquer um desses itens. Sua única vantagem é a vida mais barata – lamentavelmente, mais frágil também. Isso tanto vale para países que praticam um liberalismo econômico furioso, como o EUA, quanto para aqueles pouquíssimos que se fantasiam de socialistas e até para toda a Europa, que adota um capitalismo com focinheira. 

O Brasil entra nessa história em posição muito particular, quase única. É o quinto país de maior população em todo o mundo – acima dele, só China, Índia, EUA e Indonésia. Nenhum deles, porém, nem os EUA, concentra percentual tão grande nas cidades: 84%, segundo o senso de 2010 – ou seja, há quatro anos, mais de 160 milhões de pessoas já viviam em ambientes urbanos.

Apesar de tamanho predomínio na distribuição dos brasileiros, as cidades – embora algumas comicamente se intitulem "maravilhosas" – são um descalabro, uma referência mundial de iniquidade. Quando indicadores, há pouco mais de dez anos, apontaram para o aumento da pobreza nos EUA, a mídia americana falou em "brazilianização".  A vitrine mais escandalosa da desigualdade nacional são as nossas "duas cidades", que exibimos com um cinismo chocante: aquela com padrão de vida desenvolvido e a outra, a cidade pobre, a poucos quarteirões dali, com padrão de vida de quarto mundo, de periferia africana.

Para que esse cenário existisse assim tão cruelmente, foram necessários séculos de injustiça, de escravidão, de corrupção, de violência econômica de uma classe dominante predatória e provinciana. Agora, o preço do luxo brega numa extremidade social é a insegurança em toda parte, a necessidade de que a riqueza em excesso seja usufruída em jaulas de bronze, blindex e insulfilm.

Mas já é tempo de que governos com relativo grau de democratização levem a sério políticas nacionais para as cidades. O Ministério das Cidades, ou seja lá qual for o órgão federal com esse objetivo, precisa deixar de ser carne jogada à tal base aliada e ser tratado como instrumento essencial de transformação. Precisa mobilizar ideias, esforços e recursos para revolucionar a cidade no Brasil, longe da especulação imobiliária que até hoje tem convertido toda tentativa em negócios e enriquecimento para os suspeitos de sempre.

Talvez o Brasil, país tão engraçadinho e carnavalesco, já esteja adulto (ou calejado) o bastante para pensar em políticas de efeitos duradouros e menos em latarias brilhantes. Um grande programa nacional de planejamento e investimentos na humanização geral das cidades (que hoje, do modo como funcionam, são usinas de neurose e improdutividade) pode constituir um fator de mobilização e crescimento econômico mais vigoroso que todos incentivos e renúncias fiscais em benefício de uma ou duas indústrias, como as montadoras, que só fazem piorar ainda mais as cidades.
*David Paiva cursou História na UFMG, foi redator publicitário e é escritor.

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