Setores conservadores da sociedade insuflam o ódio ao PT para justificar mazelas históricas.
Ganha uma passagem para Miami o intelectual de Higienópolis que souber explicar as origens da violência atual no Brasil. Não vale dizer, como alguns tipos dizem sobre quase tudo: "a culpa é do PT". Quem repete essa formuleta é pensador do nível de Paulo Coelho e, nesse célebre bairro de São Paulo, tem gente de "padrão diferenciado".
Não, desta vez não basta dizer que a culpa seria do PT. Nem da Dilma, é claro.
Quando o Brasil perdeu a Copa no Maracanã, em 1950, o culpado foi o Barbosa. Foi fácil achar o bode expiatório. Como dizia Nelson Rodrigues, goleiro é uma posição tão maldita que nem a grama cresce onde ele fica. Se perdêssemos a Copa atual, quem levaria a culpa? O coitado do Julio César, que quase não se recuperou de 2010?
A culpa seria do PT? Está tudo montado para que seja assim, caso haja derrota. Mas não sejamos ingênuos e simplistas: no mínimo, o futebol conta, a equipe técnica e a torcida também.
Na vida social é um pouco assim. Pode até haver culpados, mas os fatores, variáveis e causas são tantos que não basta eleger apenas um, mesmo que pareça o predominante. A violência disseminada na sociedade brasileira atual é complexa a tal ponto que não pode ser definida por um dedo duro apontado em direção a quem quer que seja.
Se alguém imaginava que a democratização do País, depois de uma longa e brutal Ditadura, traria uma era de paz e tranqüilidade, enganou-se.
Mesmo com as profundas mudanças na sociedade trazidas pela democracia e, depois, pelo crescimento com distribuição de renda da era Lula-Dilma, a violência não diminuiu no interior do tecido social, nas grandes cidades e até nas médias e pequenas cidades do interior do Pais.
Esse é um motivo de perplexidade entre todos os que acreditavam ingenuamente na natureza conciliadora e amena do regime democrático. Democracia é, em grande medida, conflito. Ainda que resolva problemas sociais justamente por meio da expressão política dos conflitos, não exclui a manifestação violenta de demandas coletivas e nem zera a marginalidade.
O que isso significa? Quer dizer que a democracia não liquida os problemas e, às vezes, até os expõe à luz do dia, ao contrário das ditaduras. O risco disso é que os simplificadores e/ou mal intencionados tirem a "conclusão" estúpida de que a democracia é causa de violência. Não é -- justamente por expor e conter institucionalmente alguns dos conflitos que atravessam o corpo da sociedade.
É possível descrever, contudo, um clima geral de inquietação, brutalidade e desrespeito pelo outro na sociedade brasileira.
Episódios chocantes como o linchamento de uma mulher inocente no Guarujá, outro em Araraquara, onde um jovem suspeito de latrocínio foi morto a pancadas por moradores enfurecidos, a sucessiva queima de ônibus em vários pontos de São Paulo, Rio e outros estados, as manifestações de rua com quebra-quebra, os saques na Bahia e diversos pontos onde houve greve da polícia, os estupros seguidos de morte, as brigas de namoro que acabam em assassinato, os latrocínios paulistas quase rotineiros, os tiroteios na Maré com várias baixas -- tudo isso dá a impressão de que estamos num inferno, no pior dos mundos.
Um diagnóstico preciso é, como dissemos, muito difícil. Mas existem alguns elementos de histeria em nossa sociedade parcialmente localizáveis e, talvez possam fornecer algumas pistas aos sociólogos e antropólogos de Higienópolis. Vejamos.
Alguém consegue negar que programas sensacionalistas de TV tenham algo a ver com o clima de paranoia e histeria coletiva que levou à justiça com as próprias mãos no Guarujá e em Araraquara?
Esses programas desqualificam diariamente a Justiça, pedem uma outra justiça com pena de morte, absolvem as ações violentas da policia e pedem literalmente o extermínio dos bandidos. O alvo deslocado das decepções, da falta de reconhecimento social, das dificuldades econômicas e da exploração passa a ser a figura do bandido.
Uma outra fonte de violência está no clima de catástrofe iminente criado pelas grandes corporações de imprensa e TV em relação à realização da Copa do Mundo e à situação econômica do Brasil. Nunca se viu uma campanha de auto-difamação tão intensa em nosso próprio País. É como se quisessem passar uma imagem deteriorada para impedir os turistas e torcedores estrangeiros de se aproximarem do território nacional. O "complexo de vira-lata" virou arma de propaganda eleitoral nas redes sociais e na mídia.
Pela primeira vez também, a mídia conservadora promove passeatas e manifestações de rua. Seus líderes são glorificados como heróis da oposição ao governo. Viram pequenas celebridades.
Até alguns movimentos sociais antes execrados como subversivos, são apontados como adversários inevitáveis do governo que os teria criado. O feitiço virou contra o feiticeiro, dizem. Não são descritos como expressão natural dos conflitos democráticos, que nascem da reivindicação de que se vá além do que as camadas populares já obtiveram de conquistas sociais. Precisam ser "adversários do governo".
Está havendo uma mistura de imagens dos diferentes movimentos sociais, para extrair dessa confusão a impressão de que há uma instabilidade nacional provocada pelo governo. A violência das manifestações diminuiu um pouco desde a morte do cinegrafista no Rio, em fevereiro, provocando o refluxo dos Black Blocs, cujo ódio ao governo se somava ao ódio da oposição oficial a Lula e à presidente Dilma. Mas o influxo de ódio não parou e tende a aumentar à medida em que as eleições se aproximam.
Uma boa parte da violência atual está ligada às próximas eleições. O método é dirigir a raiva contra o governo e apeá-lo do Planalto. As feiticeiras eram queimadas por levar a culpa pelas pestes e pragas medievais. Essa foi sempre a função, até mesmo religiosa, do "bode expiatório" da tradição judaico-cristã. Com o nazismo, o bode expiatório tornou-se o judeu, culpabilizado pela crise econômica da Alemanha anterior à ascensão de Hitler. O judeu passou a ser a própria encarnação do Diabo.
Aqui, a crise é bem pequena na economia comparada ao resto do mundo (o Brasil ainda cresce!) e ao passado, mas é preciso insuflar toda a raiva contra o "bode expiatório". Os petistas são os judeus do Brasil atual, pelo menos para a oposição organizada. A culpa sempre "é do PT". Não é preciso ser petista para ver que querem exterminar os petistas. Por enquanto, só na mídia e nas urnas.
*Reinaldo Lobo é psicanalista e jornalista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com e uma página pública no Facebook: facebook.com/reinaldolobopsi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário