Críticos do mundo inteiro escolhem 'Vertigo', de Hitchcock, como o melhor filme de todos os tempos
Por Marco Lacerda*
‘Vertigo’ (Um corpo que cai), de Alfred Hitchcock, foi apontado o melhor filme de todos os tempos, superando ‘Cidadão Kane’, de Orson Welles, de acordo com a última pesquisa de opinião da revista Sight and Sound, porta-voz do Festival de Cinema Britânico (BFI).
A revista realiza esse tipo de sondagem a cada dez anos e a fita dirigida por Welles ocupou o primeiro posto na lista dos cinqüenta melhores filmes durante as últimas cinco décadas.
Na última pesquisa os especialistas concederam a primeira posição a ‘Um corpo que cai’, suspense que o diretor britânico dirigiu em 1958, superando ‘Cidadão Kane’ por 34 votos. Nenhum outro filme rodado na década de 50 foi incluído na lista.
Aos especialistas em cinema que participaram – ao todo 846, entre distribuidores, críticos, acadêmicos e escritores – foi pedido que, ao avaliarem os trabalhos, levassem em conta a relevância da história cinematográfica, suas inovações estéticas e o impacto que os filmes escolhidos tiveram em suas vidas e em sua visão do cinema. Com um elenco protagonizado por James Stewart e Kim Novak, ´Um corpo que cai´ conta a história de um policial aposentado que sofre de um incontrolável pânico das alturas.
O gênio do cinema. Pode-se perfeitamente assim iniciar o perfil do melhor diretor de todos os tempos, o “Mestre do Suspense” (apelido dado por ele mesmo, se autopromovendo), responsável por nada mais, nada menos que alguns dos melhores filmes da história. Tinha algumas características únicas que, sem dúvida nenhuma, o transformaram, junto com seu talento, no diretor mais famoso que já existiu.
Amigo do delegado
Nascido em Leytonstone, Londres, no dia 13 de Agosto de 1899, o inglês teve severa educação dos pais católicos, o que serviu diretamente em seu interesse pelo crime. Insistia em viajar de ônibus interurbanos e, como o pai era contra, puniu-lhe deixando-o preso por alguns minutos em uma cadeia onde era amigo do delegado. Desde então, Hitchcock adquiriu fobia a policiais, ironicamente incluindo-os em quase todos os seus filmes.
Em 1919, com apenas 20 anos, conseguiu seu primeiro emprego na área cinematográfica. Foi nos estúdios da Players-Lasky, onde fazia interlúdios de títulos nos filmes Aprendeu a escrever roteiros, editar e diversos outros recursos ligados à arte. Seu primeiro filme foi The Pleasure Garden, de 1925, apesar de ter substituído o diretor em Always Tell Your Wife, em 1922, e escrever roteiros desde 1923.
Em 1926, em seu terceiro filme, O Inimigo das Loiras (The Lodger), Hitchcock começou a fascinar com seu dom de fazer suspense. Fala sobre Jack, um homem que é injustamente acusado de um crime após ser confundido com o Estripador homônimo. O filme anunia também o início de uma das mais marcantes características do diretor, a de fazer pequenas pontas em suas produções. Característica que, por sinal, teve que ser alterada com o tempo: ele já não mais aparecia no meio de seus trabalhos, pois as pessoas ficavam entretidas em achá-lo e perdiam a atenção na trama principal, começando a aparecer então logo no início das histórias subseqüentes.
Nesse mesmo ano se casou com a também do ramo Alma Reville, mulher que nunca mais deixou. Em 1928, nascia Patrícia, filha do diretor que fez pontas em alguns dos seus filmes (a secretária de Psicose, a irmã de Pacto Sinistro, etc). Dirigiu filmes britânicos até A Estalagem Maldita (Jamaica Inn, 1939), quando se mudou para os EUA. Contratado por David O. Selznick (produtor de E o Vento Levou e Tudo começou em Nápoles), recebeu 800.000 dólares para realizar cinco filmes.
Futricas internacionais
Desse contrato saiu um de seus maiores sucessos, Rebecca, a Mulher Inesquecível (Rebecca, 1940), a primeira fita do diretor a ganhar o Oscar de melhor filme. A obra é realmente fantástica: fala de um homem viúvo que se casa com uma jovem depois da morte da mulher (interpretada por Joan Fontaine, indicada ao Oscar pela performance).
Com o desenrolar da história, a menina sofre com a “sombra” da ex-mulher, perfeitamente representada pela empregada da casa, inclusive no visual, longos vestidos que davam a impressão de fazê-la flutuar, representando o fantasma da ex-mulher do dono patrão, tão amada por ele. Em 'Rebeca', mais que uma bela história, Hitchcock confirma sua genialidade através das técnicas utilizadas, extremamente avançadas para a época, e cheias recursos. A abertura fala por si: longos planos sequentes, efeitos de luz e fumaça para introduzir o público no clima fantasmagórico concebido pelo diretor.
Ainda neste ano produziu o ótimo Correspondente Estrangeiro (Foreign Correspondent, 1940), filme que trata de conspirações internacionais descobertas por um simples correspondente internacional curioso. É uma pena que a história tenha sido pasterizada ao gosto americano tão repudiado em filmes mais recentes, como Pearl Harbor e Independence Day.
Aliás, algo que ele pode ter sido obrigado a incluir no filme, já que não é o autor do roteiro. Deixemos isso de lado, há crédito suficiente em sua conta para que o deslize seja aceito. No ano seguinte, Joan Fontaine novamente foi indicada ao Oscar, porém desta vez levando a estatueta para casa por seu trabalho em Suspeita (Suspicion, 1941), terceiro filme americano do diretor que começava a se consagrar como um mestre em dirigir atrizes. Más línguas sempre falaram que paixões platônicas por elas eram consumidas internamente, algo nunca confirmado.
Diretor sempre inovador e criativo, nunca tinha medo de arriscar. Festim Diabólico (Rope, 1948) é um filme extremamente complexo e ousado: rodado todo com apenas oito cortes. Para não encarecer demais sua produção, todas as tomadas eram exaustivamente ensaiadas, com cenários móveis para facilitar a movimentação da câmera pelo set. Essa técnica, contudo, nunca mais foi usada, pois apesar dos incansáveis ensaios, o custo de uma produção desse tipo acabava muito elevado. Em todos os seus filmes os planos eram estudados a fundo, muitas vezes poupando Hitch da necessidade de olhar pelo visor da câmera, pois tinha certeza de que o pensado iria funcionar na prática.
Em Janela Indiscreta (Rear Window, 1954) criou uma enorme vizinhança nos estúdios da Paramount para ambientar sua trama de um jornalista com a perna fraturada, que se envolve com as vidas dos vizinhos, ocupando assim o seu ócio e desconfiando de um assassinato cometido por um deles. James Stewart impecável, Grace Kelly inesquecível. No ano seguinte dirigiu Ladrão de Casaca (To Catch a Thief, 1955), muito mais romance do que suspense, mas com uma temática secundária de crimes, para variar. É um dos filmes com o qual o diretor menos simpatiza, talvez pelo fato de ter perdido sua loira Grace Kelly, que conheceu o marido, o Príncipe Rainier de Mônaco, durante as filmagens, abandonando o cinema para sempre.
‘Psicose’, um clássico
Em 1955, ganhou o seu próprio programa de televisão (“Alfred Hitchcock Presents...”), o que aumentou muito a sua popularidade e o transformou em um homem rico. O programa, que trazia diversos episódios com histórias de crimes e mistérios, durou até 1961.
No seu clássico absoluto, Psicose (Psycho, 1960), Hitchcock quebrou todas as barreiras imagináveis do cinema ao rodá-lo propositalmente com um baixo orçamento (600.000 dólares, ao contrário dos 3 milhões investidos em Vertigo), além de mostrar, pela primeira vez na história do cinema, um vaso sanitário (até então proibido pela censura). Filmou tudo em preto e branco (ignorando a tecnologia das cores para não criar um contraste com o sangue), escondeu uma forte sexualidade (a cena em que Norman vai atender o balcão e diz que estava comendo, quando na verdade estava transando com a protagonista), enfim, quebrou todas as barreiras possíveis e de tudo o que já havia criado antes.
Um homem caseiro
Claro, isso sem falar na maravilhosa história com uma surpreendente (e quase única) troca de protagonistas no meio da produção, executada perfeitamente. A cena do chuveiro é uma das mais clássicas já vistas, com o gênio utilizando calda de chocolate para representar o sangue que rola na tela.
Usou e abusou de recursos especiais para fazer Os Pássaros (The Birds, 1963) perseguirem sua protagonista, num tempo muito distante da computação gráfica. Encerrou a carreira com Trama Macabra (Family Plot, 1976), falecendo por complicações renais quatro anos depois. Além de todos esses filmes, Hitchcock tinha uma maneira muito peculiar de tratar com seus atores: sempre se referia a eles como sendo seu “gado”. Seu respeito dentro do cinema era tanto que ninguém ousava abrir a boca no set de filmagem.
Com todos esses sustos e cinismo ao seu redor, é até irônico pensar que, na vida real, Hitchcock era um homem caseiro, amante da família e um ótimo gourmet. É simplesmente inaceitável que a Academia nunca o tenha premiado com um Oscar de melhor diretor, ficando somente com as cinco indicações e o prêmio pelo conjunto da obra, dado em 1967.
"Psicose", de Alfred Hitchcock. Veja o trailer.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e editor-especial do Domtotal
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