O “povo de Deus”, como o Concílio Vaticano II preferiu chamar os fiéis cristãos, tem de refletir sobre os que assumem a responsabilidade em suas comunidades. Os leigos têm de lidar diariamente com os que recebem a “ordem” para serem seus “pastores”. Decerto, a Igreja não uma democracia parlamentar, mas também não é uma autocracia! É uma comunhão fraterna. Mesmo se as decisões mais abrangentes têm de ser tomadas pelos que têm uma missão mais ampla, é importante que, na medida do possível, todos compreendam o que interessa à comunidade eclesial. Por isso, a teologia – a reflexão e o estudo acerca da fé – não pode ficar dentro do círculo do clero, mas deve ter, de alguma maneira, a participação de todos os membros realmente fiéis da comunidade eclesial (não falo dos que quase nunca participam). E deve ser compreensível também para as pessoas honestas de fora, já que a racionalidade é de todos os seres humanos. Podemos aprender de todos. Se a teologia não consegue comunicar com a “comunidade de compreensão” humana, há de se perguntar se ela traduz a verdadeira humanidade de Cristo.
Nesta perspectiva de “teologia pública”, quero tocar num assunto que sempre reaparece: a possibilidade de termos padres casados. Aqui cabem alguns esclarecimentos. Deve-se distinguir entre o celibato dos padres diocesanos (chamados também de seculares) e o dos religiosos e religiosas, que fazem voto de obediência, pobreza e celibato. Os padres seculares são obrigados ao celibato por uma obrigação canônica, que não é inerente ao “sacramento da ordem sacerdotal”. Os diáconos, por exemplo, que recebem o primeiro grau da ordem sacerdotal, podem estar casados. E também entre os presbíteros (os “padres” ou “sacerdotes”), os quais acedem ao segundo grau do sacramento da ordem, encontram-se pessoas casadas: alguns viúvos, ou aqueles que já foram pastores numa igreja cristã em que os sacerdotes podem casar. Nas igrejas católicas orientais os casados são admitidos ao sacerdócio. O celibato é uma questão de espiritualidade e de pastoral, “não é um dogma” (papa Francisco). Não há impedimento de ordem teológica contra a ordenação sacerdotal de homens casados.
E agora, duas considerações de ordem psicológica. Primeiro: uma razão por que tantos fiéis participantes desejam a ordenação de homens casados é a maturidade humana. Não que todos os padres celibatários sejam imaturos, longe de lá, como também não todos os homens casados são psicologicamente maduros... Mas não seria ruim poder conversar com um padre de igual condição de vida, que experimente na pele a convivência conjugal, que conheça de perto as exigências da educação, que tenha compreensão profunda dos processos afetivos, não só de homem e mulher, mas também da afetividade em geral. Decerto, tudo isso é relativo, não tenhamos ilusões. Quem tem filhos pode pensar que os problemas educativos são, para todas as pessoas, os mesmos que ele está enfrentando, julgando tudo a partir de seu próprio caso... Mas, apesar disso, parece que seria um enriquecimento se o clero tivesse pessoas casadas no seu meio.
A segunda consideração pode parecer mais surpreendente. Tanto o matrimônio como o “celibato consagrado” são formas de santificação da sexualidade, do eros. No caso dos casados, vivendo a sexualidade no espírito de Cristo dentro do matrimnônio – e por isso é sacramento, sinal sagrado de Cristo. No caso do celibato consagrado trata-se de integrar a dimensão do eros numa dedicação mais ampla e numa atenção afetiva menos centrada em uma só pessoa ou família, porém sensível a todos os que podem ser ajudados por isso. Ora, para isso é preciso uma compreensão livre e natural do sexo, nada de repressão. Sexo não é o contrário de castidade. Antes, a castidade cristã é a vivência bem ordenada da sexualidade. A encíclica do papa Pio XI sobre a família, em 1930, chamava-se “Casti connubii”: castos cônjuges -- não por se absterem de relações, mas por serem mutuamente fiéis e viverem sua sexualidade no espírito do evangelho de Cristo. E assim como existe uma “castidade dos casados” existe também a castidade dos que, por causa de sua dedicação especial à missão de Cristo optam por não casar. Em ambos os casos, no matrimônio cristão e no celibato consagrado, a sexualidade é assumida num amor “agápico” -- não imediatista como o que a sociedade atual exibe com o rótulo de liberdade, mas de fato é escravidão. Ora, para termos padres celibatários “maduros” é preciso uma educação adequada para tal afetividade que seja livre de repressão, sem complexos nem segundas intenções, capaz de superar carências e impulsos, rica, generosa e sincera. Por isso é questionável certo tipo de formação que “pré-fabrica” celibatários, fechando-os numa redoma clerical. E se alguns bispos falam em “viri probati” para caracterizar os casados que poderiam ser ordenados, também os que não casam devem ser “viri probati”, provados no amor e na responsabilidade.
*Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara.
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