segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Céu e inferno de Walter Benjamin

Chega às livrarias da Espanha uma nova edição de ‘Passagens’, obra clássica do pensador alemão.

Por Marco Lacerda*
Recém-lançada em nova edição na Espanha, ‘Passagens’ é a grande obra-prima póstuma do filósofo, crítico e ensaísta alemão Walter Benjamin. Escrito entre 1927 e 1940, mas só publicado em 1982 na Alemanha, seu projeto inacabado é composto de uma farta coletânea de esboços, notas e materiais agrupados por módulos temáticos e organizados em ordem alfabética.
Para muitos, não existe ensaio filosófico mais famoso, complexo, influente e pouco lido do que ‘Passagens’. Trata-se de um monte de papéis que acabaram guardados numa maleta em cujas páginas há quilômetros de citações e comentários. “Um conjunto de ruínas”, assim descreve a obra o filósofo italiano Giorgio Agamben, “a visão de um sobrevivente quando passa os olhos pelos cadáveres e ruínas que se espalham ao seu redor depois de um bombardeio.”
O que buscava Benjamin com tamanha quantidade de documentos fragmentados agora reunidos pela editora espanhola Abada com tradução do poeta Juan Barja? O editor alemão Rolf Tiedmann acredita que o desejo de Benjamin era escrever uma filosofia da história que superasse a herança de Hegel e Marx.
Outros opinam que é a mais sofisticada análise das origens do capitalismo industrial. Há também os que não a consideram uma obra filosófica, mas literária, um prodigioso experimento comparável ao de Joyce, que usa as técnicas cinematográficas de montagem sobre as quais tanto escreveu Benjamin. E não faltam os que a qualifiquem como um vasto poema surrealista.
Suicídio com morfina
Na primeira etapa de ‘Passagens’ é indiscutível que Benjamin queria reconstruir o auge do capitalismo nascido da Revolução Francesa, fazendo uso de um método surpreendente: vivificando as ruínas que restaram de um momento explosivo: os panoramas, as grandes lojas de Paris, a publicidade e a prostituição. Esses restos arqueológicos aparecem diante do nosso entendimento como cadáveres trazidos de volta à vida (Benjamin usa a palavra ‘fantasmagoria’ para definir seu projeto) com capacidade para despertar-nos do sonho capitalista.
Ainda na primeira parte, Benjamin explora um mundo composto por mitos eternos reativados em cada etapa da história e que, como tais, são invisíveis no presente, mas podem ser intuídos no passado. O método não difere muito do usado por alguns surrealistas quando descrevem uma bomba de gasolina como um tótem selvagem dos tempos modernos.
“O capitalismo é um produto natural do qual sobreveio a Europa, um novo sonho em cujo interior as forças míticas foram novamente reativadas”, escreve. Seu mentor e protetor, o filósofo Theodor W. Adorno, marxista ortodoxo e simpatizante do partido comunista, não podia admitir que Benjamin pusesse de forma onírica o que para os crentes era uma superestrutura racionalmente deduzível da infraestrutura material. Benjamin teria que mudar de método se quisesse continuar contando com a proteção de Adorno.
A partir de 1929, Benjamin interromperia sua obra para estudar a de Marx. Tanta humildade não teria recompensa porque ele nunca conseguiu ser um comunista aceitável e, mesmo nos dias de hoje, somente os muito conservadores continuam apresentando-o como filósofo marxista. O fato é que não retomou seu trabalho até 1934 e não o abandonaria até 1940, quando a perseguição nazista o obrigou a fugir de Paris e o levou ao suicídio em Portbou com uma overdose de morfina.
Antes, porém, vieram os fantasmas da comuna, da Paris de Haussmann, da Bolsa de Valores, dos trens, dos bancos. É quando surge também o fantasma de Baudelaire, primeiro poeta lírico da cidade industrial que dá sentido à acumulação de bens, para irritação de Adorno.
A grandeza das interpretações 

A grandeza dessa obra catastrófica permite tantas interpretações que deixa os comentaristas paralisados. Há, porém, na opinião do espanhol Félix de Azúa “um elemento de certa importância para alguns leitores. Indiretamente, na obra de Walter Benjamin encontra-se oculta uma defesa romântica da arte, tão original quanto obscura. É evidente que ele lutava contra a filosofia da historia progressista, a de Hegel, a de Marx, a do Cristianismo.”
Não acreditava na continuidade temporal e escatológica que permite deduzir leis e sentido dos acontecimentos, como o tempo se dirigisse a algum lugar. Mesmo quando simulou ser um materialista dialético tinha demasiada inteligência para submeter-se a um dogma. Via o curso da história como uma sequência sempre interrompida, um cataclismo enigmático que amontoa cadáveres e que, às vezes, se ilumina com o relâmpago de algum acontecimento.
O que vemos durante os raros momentos em que despertamos do nosso sonho são arquétipos originários que dão brevemente sentido a uma existência banal mediante a união perfeita de presente e passado. “Esses momentos de iluminação não são produzidos pelas guerras, revoluções, inventos ou lutas sociais. São produzidos pelas obras de arte”, diz Félix de Azúa.
Em nosso firmamento brilham miríades de estrelas, embora saibamos que muitas delas morreram e que o que chega até nós são seus fantasmas. O mesmo acontece com as obras de arte, com particularidade que de que inclusive as estrelas mortas e fantasmagóricas permitem aos bons marinheiros navegar pelo mar da existência.
“Passagens” – Walter Benjamin. Veja o vídeo:

*Marco Lacerda é jornalista, escritor e editor-especial do Domtotal. Este artigo foi escrito com base em ensaio do filósofo e escritor espanhol Félix de Azúa.

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