sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Santo Agostinho, pensador, teólogo maior e patrimônio da humanidade

Por Padre César Moreira

Santo Agostinho é muito conhecido pelos cristãos que tem mais acesso à história da Igreja e à teologia. Sobretudo, o filho de Santa Mônica é falado pela vida que viveu antes de se converter e pelo caminho de conversão que seguiu. Inclusive, ele conta sua experiência num livro que ficou célebre, intitulado "Confissões".

Para conhecer um pouco de Santo Agostinho e o que ele significou para a Igreja, ouvimos o teólogo e professor Lino Rampazzo. Vale a pena conhecer Santo Agostinho. Confira atento o que nos fala dele o nosso entrevistado.

Padre César Moreira: Quem foi Santo Agostinho? Por que é tão respeitado na história da Igreja?

Professor Lino: Antes de responder a esta pergunta, é preciso lembrar que, nos primeiros séculos do Cristianismo, houve a contribuição significativa de grandes escritores, muitos deles também bispos e santos, chamados de “Padres da Igreja”, os quais colocaram as bases da doutrina cristã. Basta pensar, por exemplo, na formulação da doutrina sobre a Trindade, a divindade e humanidade de Cristo, os sacramentos da Igreja, sempre a partir da reflexão sobre a Bíblia.

Os mais importantes destes “Padres” são aqueles que escreveram nas duas línguas do antigo Império Romano, o grego (os "Padres Gregos") e o latim (os "Padres Latinos). Destacam-se os seguintes Padres Gregos: S. Atanásio, S. Basílio, S. Gregório de Nissa, S. Gregório de Nazianzo e S. João Crisóstomo; e os seguintes Padres Latinos: S. Hilário, S. Ambrósio, S. Jerônimo, S. Agostinho e S. Leão Magno.

Pois bem, Santo Agostinho, que vive entre 354 e 430, e escreve em latim, é considerado como o maior dos Padres da Igreja Homem de paixão e de fé, de grande inteligência e incansável solicitude pastoral, este grande santo e doutor da Igreja é muito conhecido, pelo menos de fama, também por quem ignora o cristianismo ou não tem familiaridade com ele, porque deixou marca muito profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo.

Pode-se dizer que todo o pensamento da antiguidade conflui na sua obra e dela derivam correntes de pensamento que permeiam toda a tradição doutrinal dos séculos sucessivos. Agostinho é o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras. O seu biógrafo Possídio diz: parecia impossível que um homem pudesse escrever tantas coisas durante a vida. De 395 até a morte (430) foi bispo de Hipona, no norte da África, que pertencia, na época, ao Império Romano.

Padre César Moreira: De fato, ele levou uma vida contrária aos mandamentos de Deus? Por que fez tal escolha?

Professor Lino: Para entender os comportamentos de uma pessoa é preciso situá-la no ambiente em que vive. Vamos, portanto, considerar onde Agostinho nasceu e cresceu. Ele nasceu em Tagaste (Souk-Ahras) pequena cidade da Numídia, na Argélia de hoje, na fronteira da Tunísia.

Diríamos hoje que ele pertencia a uma família de classe média, mas que não podia pagar seus estudos. Encontrou um “padrinho”, de nome Romaniano, que percebendo sua inteligência deu-lhe os subsídios necessários para estudar retórica em Cartago.
O pai de Agostinho, de nome Patrício, não é cristão e permanecerá pagão até a véspera de sua morte. A mãe, Mônica, é uma cristã fervorosa. O jovem Agostinho é um espírito vivo, natureza emotiva, de uma sensibilidade excessiva, aluno indisciplinado, demasiado seguro de suas qualidades. Ele vai juntar-se às “ovelhas negras”, jovens desordeiros, quando estuda em Cartago.

A esse respeito, ele escreveu: "Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilícitos" (Confissões III, 1). Conviveu, depois, até sua conversão, com uma moça, que lhe deu um filho, de nome Adeodato, nascido em 372. A religião de sua mãe parece-lhe um “conto de Carochinha”, ou, para dar um exemplo dos dias atuais, uma historinha tipo “Chapeuzinho Vermelho e Lobo Mau”. Aliás ele começa a ler a Bíblia, utilizando traduções mal feitas e ficou desanimado. São Jerônimo ( 347-420), seu contemporâneo, estava, na época, realizando uma muito mais valiosa tradução da Bíblia.

Em 374 começou a seguir a seita dos Maniqueus, cuja moral não era muito exigente, pois sustentavam o seguinte: "Não somos nós que pecamos, mas alguma outra natureza estabelecida em nós" (Confissões V, 10). Daí justificavam-se, sem assumir as próprias culpas. Apesar dos prantos da sua mãe Mônica, ele, até os 28 anos, aderiu a esta seita. Mas sua procura pela verdade deixa-o, aos poucos, insatisfeito com as teorias dos Maniqueus.

Padre César Moreira: Qual o motivo de sua conversão? Como aconteceu? Quem teve influência na reviravolta que deu na sua fé e no seu modo de viver?

Professor Lino: Por incrível que pareça, a conversão de S. Agostinho começa quando, aos 19 anos de idade, lê a obra Hortêncio, um escrito de Cícero, que depois se perdeu. De fato, o texto de Cícero despertou nele o amor pela sabedoria, como escreverá, já Bispo, nas Confissões: "Aquele livro mudou verdadeiramente o meu modo de sentir", a ponto que "de repente perdeu valor qualquer esperança vã e desejava com um incrível fervor do coração a imortalidade da sabedoria" (III, 4, 7).

No fundo, Agostinho desde então, irá procurar aquela sabedoria que dá sentido à vida e que ele encontrará somente na fé cristã. Mas, antes que isso aconteça, passam alguns anos. Assim, professor de gramática aos 20 anos na sua cidade natal, regressou a Cartago, onde foi um brilhante e celebrado mestre de retórica. Transferiu-se, em seguida, para Roma, e depois para Milão, onde na época residia a corte imperial e onde obtivera um lugar de prestígio, como professor, graças ao interesse e às recomendações de Símaco, prefeito de Roma.

Em Milão Agostinho adquiriu o costume de ouvir, inicialmente para enriquecer a sua capacidade de orador, as lindíssimas pregações do Bispo Ambrósio. No começo, sentiu-se fascinado pela palavra deste bispo culto; mas, aos poucos, a mensagem deste santo bispo atingiu cada vez mais o seu coração. Começou a apreciar a Bíblia e a entender que todo o Antigo Testamento é um caminho rumo a Jesus Cristo.

Percebeu, assim, toda a unidade do mistério de Cristo na história e também a síntese entre a razão e a fé, que se realiza em Cristo, Verbo eterno que se fez carne. Começou, então, a ler a Bíblia e sobretudo as Cartas de São Paulo. A esse respeito ele narra que, no tormento das suas reflexões, tendo-se retirado num jardim, ouviu improvisamente uma voz infantil repetindo uma cantilena que nunca tinha ouvido: tolle, lege, tolle, lege, "toma e lê, toma e lê" (Confissões VIII, 12).

Recordou-se então da conversão de Santo Antão, pai do monaquismo, e abriu o texto das cartas de São Paulo. Seu olhar caiu na passagem da epístola aos Romanos onde o Apóstolo exorta a abandonar as obras da carne e a revestir-se de Cristo (13, 13-14). Tinha compreendido que aquela palavra naquele momento se dirigia pessoalmente a ele, vinha de Deus através do Apóstolo e indicava-lhe o que fazer naquele momento. Sentiu assim dissipar-se as trevas da dúvida e encontrou-se enfim livre para se doar totalmente a Cristo: "Tinhas convertido a ti o meu ser", comenta ele (Confissões, VIII, 12).

Foi esta a primeira e decisiva conversão.Assim, aos trinta e dois anos, Agostinho foi batizado por Ambrósio a 24 de Abril de 387, durante a vigília pascal, na Catedral de Milão. Juntamente com ele, foi batizado o filho Adeodato, que irá morrer poucos anos depois. A mãe, Mônica, tinha acompanhado o filho até Milão. Ela rezou muito para que ele se convertesse. Podemos, então, dizer que a conversão de Agostinho foi obra da Graça de Deus, que atendeu às orações da mãe e, através da pregação de Ambrósio, iluminou sua mente.
Depois do batismo, Agostinho decidiu regressar à África com alguns amigos, com a ideia de praticar uma vida comum, de tipo monástico, ao serviço de Deus, na cidade de Hipona. Nesta cidade da beira-mar africana, apesar das suas resistências, foi ordenado presbítero em 391; e, quatro anos mais tarde, em 395, foi sagrado Bispo.

Padre César Moreira: Santo Agostinho tem influência no modo de a Igreja fazer filosofia e teologia? Em que precisamente?

Professor Lino: Há uma expressão muito interessante de S. Agostinho, que influenciou muito a filosofia e a teologia: crede ut intelligas ("creia para compreender") e intellige ut credas ("compreenda para crer") (Sermão 43, 9). Trata-se do diálogo entre a fé e a razão. Aliás, na primeira obra que ele escreve depois da sua conversão, ele afirma que a fé e a razão são "as duas forças que nos levam a conhecer" (Contra os Acadêmicos, III, 20, 43).

Gostaria, a esse respeito, de dar um exemplo sobre como S. Agostinho analisa o mistério da Santíssima Trindade, na sua obra "A Trindade", utilizando-se, ao mesmo tempo, da fé e da razão.

Partindo da afirmação da Sagrada Escritura, segundo a qual o homem foi criado "à imagem e semelhança de Deus" (Gênesis 1,27), S. Agostinho encontra esta imagem não no “homem exterior”, nem na comunidade familiar, mas na natureza espiritual, mais expressamente no fato que a alma do homem possui "memória, inteligência e amor". A partir desta analogia, ou semelhança, ele encontra no interior do homem o reflexo da Trindade: da pessoa do Pai, na memória, da pessoa do Filho, na inteligencia e da Pessoa do Espírito, no amor.

Aliás, logo depois, ele aplica o termo pessoa ao homem, afirmando que "cada homem é pessoa" (A Trindade, XV, 7). Atenção! Alguma décadas antes, os Padre Capadócios, assim chamados porque moravam na região da Capadócia, hoje situada na Turquia (S. Gregório Nisseno, S. Basílio e S. Gregório Nazianzeno), tinham criado o termo "pessoa" para falar da "pessoa" do Pai, da "pessoa" do Filho e da "pessoa" do Espírito Santo. Mas nenhum estudioso, antes de S. Agostinho, tinha chamado o homem com o termo "pessoa".
Hoje, em que se fala muito de "dignidade da pessoa humana", inclusive no 1º artigo da Constituição da República do Brasil de 1988, seria bom lembrar que devemos muito a S. Agostinho a valorização disso. Padre César, esta sua pergunta mereceria uma resposta muito longa que não pode encontrar o espaço merecido numa simples entrevista.

Limito-me, apenas, a indicar outros temas teológicos e filosóficos, analisados por S. Agostinho. Não é novidade, para a história humana, viver numa época di "ceticismo", na qual parece não existir nenhuma certeza. Bento XVI chamava isso de "ditadura do relativismo". Mas este problema existia também na época de S. Agostinho: e ele fazia o seguinte raciocínio, na sua obra A Cidade de Deus.

Se alguém afirma que não temos certeza nenhuma pelo fato de errarmos muitas vezes, pelo menos temos certeza da nossa existência, pois "si fallor, sum", quer dizer, "se eu errar, logo existo": de fato, tenho plena certeza da minha existência (A Cidade de Deus, XI, 26). Outro tema: a diferença entre a eternidade e o tempo.

Agostinho afirma que a eternidade é um nunc stans (um agora permanente) e o tempo é um nunc transiens (um agora que passa).
Quem fica pensando que na eternidade vai cansar de ver a Deus, confunde o tempo com a eternidade. Esta, pois, vai ser comparada com a nossa experiência do “instante” (Confissões XI, 11).Mais um exemplo.

Para quem afirma que o sacramento administrado por um ministro indigno é inválido, S. Agostinho afirma: “Quer Pedro batize, quer Judas batize, é Cristo quem batiza” (Comentário ao Evangelho de João 5,7).Outros temas analisados pro S. Agostinho: o mal, a liberdade, o pecado original, a necessidade da graça.

Sintetizando o pensamento de Agostinho sobre isso, podemos afirmar que o mal não vem de Deus, mas do mau uso da nossa liberdade; nós nascemos com o pecado original; e, para conseguirmos a salvação, precisamos da graça de Deus. Como já disse, estou apenas indicando estes temas que enriqueceram, graças a S. Agostinho, a filosofia, a teologia e a doutrina da Igreja.
Padre César Moreira: Que dizeres e textos de Santo Agostinho são mais conhecidos e citados?

Professor Lino: Antes de tudo, já apresentei acima várias afirmações de S. Agostinho. Agora, por disponibilizar esta entrevista no Portal A12.com, gostaria de apresentar uma bela frase de S. Agostinho sobre Nossa Senhora. Todos nós conhecemos o belíssimo trecho de S. Lucas, onde Jesus responde a uma mulher que exaltava a sua mãe, dizendo: "Feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram!". E Jesus respondeu: "Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam" (Lucas 11, 27-28).

S. Agostinho comenta este evangelho assim: "Mãe e discípula ao mesmo tempo", e acrescentava com ousadia que ser discípula para Ela foi mais importante do que ser Mãe, nestes termos; "Santa Maria fez a vontade do Pai e a fez totalmente; por isso foi mais importante para Maria ter sido discipula do que mãe de Cristo" (Sermão 72A,7).Agora vamos para outras frases.

a) Ama e faz o que quiser (Comentário a João 7, 8)

b) Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até o desprezo de Deus; o amor de Deus até o desprezo de si (A Cidade de Deus 14, 28).

c) Fizeste-nos para Ti, ó Senhor, e inquieto está o nossso coração, enquanto não repousa em ti (Confissões 1,1).

d) Que deseja o homem mais fortemente do que a verdade? (Comentário a João, 26,5).

e) A fé que não seja pensada não é fé (A predestinação dos santos, 2,5)

f) Deus é a causa do subsistir, a razão do pensar, a norma de viver (A Cidade de Deus 8,4).

g) Tornamo-nos Cristo. De fato, se ele é cabeça, nós os seus membros, o homem total é ele e nós (Comentário a João, 21,8).

Termino com esta última citação. Trata-se do conselho que Agostinho deu a um catequista: "Quando tu catequizas, fala de tal maneira que aquele que te ouve creia; crendo espere; esperando, ame" (Primeira catequese aos não cristãos IV, 8).

Padre César Moreira: Ainda hoje acontecem conversões como a de Santo Agostinho?

Professo Lino: Quero fazer uma comparação com a festa de todos os santos. Nesta circunstância, os padres, nos seus sermões, lembram, justamente, que não há apenas os "santos famosos" já canonizados pela Igreja, como, S. Francisco de Assis, S. Clara, S. Inácio, S. Afonso, ou mais recentemente, S. João XXIII, S. João Paulo II, a Beata Teresa de Calcutá ou a Beata Irmã Dulce. Há muitos cristãos simples, nas nossas famílias, que viveram a fé de maneira coerente, também nas circunstâncias difíceis. Da mesma forma, há convertidos mais famosos e convertidos menos conhecidos. Penso, a título de exemplo, a não poucas pessoas que passaram pela experiência triste das drogas e...se converteram.

Hoje não poucos destes dão seu testemunho em vários centros de recuperação, ajudando quem é dependente a libertar-sr das drogas. Tenho dois amigos ex-drogados, que hoje são...padres e ótimos padres. Ambos foram meus alunos. Não foi isso uma conversão? Mas penso também na conversão como algo que nunca termina. Alguns cristãos, já bons, a um certo ponto da vida conseguem tomar uma decisão ainda mais significativa de fé em Jesus. Gostaria de lembrar, neste momento, o exemplo de um italiano que trabalhou no Brasil. Trata-se de Marcello Candia (1916-1983).

Na Itália, sempre participava de iniciativas de caridade. Mas, a um certo ponto, decidiu vender sua fábrica e transferir-se no estado do Macapá, onde mandou construir um hospital. Em seguida abriu outros centros de acolhida, inclusive para hansenianos. No ano de 1975 a revista Manchete publicou um artigo sobre ele, com este título: "O homem mais bondoso do Brasil". A Igreja já abriu seu processo de canonização.

Sim, o mesmo Espírito de Deus que transformou a vida de Agostinho, continua agindo nos corações bem dispostos a acolhê-Lo: e, assim, as conversões continuam.
A12

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