quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Apologia do ócio

Será que baixou em todos nós o espírito de Caymmi, de morrer docemente no mar?

Por Alexandre Kawakami*

Ganhei de presente outro dia uma carta de Dorival Caymmi a Jorge Amado. Deliciosa, como um prato de abarás. A carta tem aquele cheiro de mar que a Bahia do litoral, de Salvador, exala. Aquele jeito de cidade colonial brasileira, onde as pessoas são ecos de escritos de Gilberto Freyre. Definem uma certa identidade que é, em parte, o retrato do que somos.

Sempre admirei Caymmi porque era o completo oposto de tudo que aprendi a ser. Educado sob rígida ética do trabalho, onde o esforço sempre foi a mais valiosa das virtudes, sempre houve em algum lugar da minha psique um pequeno Caymmi me falando com voz forte e confortadora: “Calma, menino. Deixa um espaço pras coisas se ajeitarem.” Mas com menos verbosidade. Depois de ter estudado o zen-budismo, que é a comparação clichê mas correta, soube entender a grandeza e o lugar desta figura que é, em todos os sentidos, expressão de nossa cultura.

Na carta que ganhei se vê a paixão da amizade permeando o papel. Quando o compositor conta Jorge Amado que saíra andando por Salvador, procurando o amigo, saudoso. Quando pergunta, revoltado (se é que monges budistas sentem revolta): o que foi você fazer na Inglaterra?

Mas Dorival Caymmi me veio à mente hoje por uma razão mais triste.

Lendo análises mais sóbrias sobre o desemprego no país, vejo que, contando-se dentro da população em idade ativa as pessoas que pararam de procurar emprego, quer porque desistiram, quer porque estão na informalidade, temos hoje uma taxa de emprego de 47%.
A Espanha se declarou em crise devastadora quando atingiu taxa de desemprego de 20%. Em outras palavras, para cada pessoa que você conhece, uma está desempregada.

Será que baixou em todos nós um espírito de Caymmi e, ao invés da labuta, metade de nós optou por morrer no mar, docemente?
É claro que não. Descobrir aonde estão estas pessoas é tarefa urgente de pesquisa e de análise. Mas teoreticamente, ouso afirmar que parte considerável provavelmente estará no comércio e prestação de serviços informal. Talvez o comércio da droga e seus serviços acessórios. Talvez no comércio do próprio corpo. Certamente em atividades criminosas, nosso grande leviatã.

No final, os brasileiros querem trabalhar e se esforçar, sim. Mas com o arranjo trabalhista existente, onde a imprevisibilidade do custo trabalhista emperra o investimento, a criação de novos postos de trabalho ou ocorre dentro do governo ou à sua margem.
Eu fujo nas letras que ganho. Está aí a que me deu algum alento:

https://catracalivre.com.br/samba/samba-na-net/indicacao/carta-de-dorival-caymmi-a-jorge-amado/
*Alexandre Kawakami é Mestre em Direito Econômico Internacional pela Universidade Nacional de Chiba, Japão. Agraciado com o Prêmio Friedrich Hayek de Ensaios da Mont Pelerin Society, em Tóquio, por pesquisa no tema Escolhas Públicas e Livre Comércio. É advogado e consultor em Finanças Corporativas.

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