O precursor da política moderna tinha um estilo de vida digno de um Casanova da Toscana.
Por Marco Lacerda*
O casario medieval de Sant’Andrea em Percussina descansa sobre as colinas suaves da Toscana rodeado por pequenas capelas e casas de campo revestidas de flores da estação. Os fazendeiros conduzem seus Apes, pequenos veículos de três rodas abarrotados de fruitas e vegetais, enquanto o cheiro de uvas fermentadas, para fabricação do Chianti local, exala dos porões das cantinas. A sensação é de estar em algum lugar longe do turbilhão do cotidiano, embora do banco nos jardins da hospedaria em que me instalei seja possível avistar à distância os telhados de Florença, inclusive a torre da catedral brilhando aos primeiros raios de sol da manhã.
Embora hoje pareça um recanto idílico do planeta, foi aqui, há cinco séculos, que o filósofo político e estadista Niccolò Machiavelli, Nicolau Maquiavel, considerado por muitos o arquiteto da política moderna, passou mais de uma década exilado. Daquele mesmo banco da hospedaria Albergaccio Machiavelli o ilustre exilado podia contemplar sua cidade natal. Maquiavel nasceu em Florença em 1469 e na maior parte do tempo da sua carreira como governante sua sorte foi o inverso da que coube aos Medici, a família florentina que assumiu o poder na Renascença e dotou a cidade de grande parte dos tesouros artísticos que hoje atraem multidões de turistas de todo o planeta.
Maquiavel participou de várias tentativas de impedir que os Medici voltassem ao poder, por isso acabou preso, torturado e banido para Sant’Andrea. O desfecho não foi de todo ruim. No período em que se manteve afastado ele escreveu ‘O Príncipe’, sua obra magna, em apenas um ano. Poucos depois de publicado, em 1513, a obra prima do estadista foi imediatamente confiscada e seu autor rotulado de “agente do demônio”.
Às vésperas de completar 500 anos desde que ‘O Príncipe’ foi apresentado aos Medici em Florença, teóricos e cientistas políticos se apressam em dizer que a obra foi mal interpretada na época e que na verdade trata-se do ponto de partida da política moderna, um tratado sobre diplomacia e das manobras de bastidores que sempre fizeram parte do universo da política. Líderes como John Adams e Bill Clinton foram influenciados por Maquiavel, estudaram seu trabalho a fundo e o colocaram em prática enquanto estiveram no poder. “E preciso ser uma raposa para reconhecer armadilhas e um leão, para ameaçar os lobos” – foi esse tipo de pensamento pragmático que tornou Maquiavel tão importante através dos séculos.
A Matteo Renzi, o carismático primeiro-ministro italiano de 39 anos, não incomodam as comparações com o velho e bom Nicolau. Ao contrário, ele fez questão de inaugurar pessoalmente as comemorações em Florença do quinto centenário do filósofo que incluem leituras de ‘O Príncipe’, apresentação da peça ‘La Mandragola’, visitas ao gabinete de Maquiavel no Palazzo Vecchio e uma exposição sobre ele na Biblioteca Nacional da cidade.
Próxima ao Palazzo Vecchio fica a Basílica da Santa Cruz onde repousam os restos de ilustres personalidades italianas como Michelangelo, Galileo e do próprio Maquiavel, em cujo sepulcro um epitáfio diz: “Tanto nomini nullum par elgoium” (Não existe eulogia capaz de homenagear nome tão grande). O que não deixa de ser surpreendente, já que o objeto da deferência era considerado um pária político ateu, proibido de entrar no templo nos últimos anos de vida.
Nem todos os lugares por onde Maquiavel passou em Florença são tão visitados hoje em dia como o Palazzo Vecchio e a Basílica da Santa Cruz. Nos fins de tarde ele costumava passear pelos jardins Oricellari (visitas hoje só com hora marcada) nos brevíssimos períodos em que os Medici o liberavam para retornar à sua amada Florença. Foi durante uma dessas rápidas passagens pela cidade que ele acabou por morrer, sendo enterrado no número 18 da Via de Guicciardini, entre a Ponte Vecchio e o Palácio Pitti.
O busto de Maquiavel no Palazzo Vecchio foi copiado da sua máscara mortuária, revelando um rosto taciturno de ossos pontiagudos e lábios finos. Antes de visitar o vilarejo de Sant’Andrea eu imaginava Maquiavel um homem de poucas paixões além do trabalho e da política. Engano. Além de sete filhos legítimos, tinha um estilo de vida digno de um Casanova da Toscana, desfrutando mulheres e despachando baldes de vinho onde quer que estivesse na Itália. “As pessoas vem apenas o que você parece ser, poucas percebem quem você verdadeiramente è”, escreve ele num trecho de ‘O Príncipe’.
Um passeio por Florença. Veja o vídeo:
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Domtotal
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