A ideia de que as pessoas de fé sejam estranha se torna sempre menos crível.
Por Charles Taylor
"Glaube als Option: a fé como opção". É essa a descrição que Hans Joas propõe para a situação contemporânea da vida espiritual/religiosa no Ocidente. Opção que tem um significado diverso de escolha. As questões de fé e não-fé não se resolvem com facilidade, como se fosse feita a escolha de um cardápio. Quando se adota uma fé ou se abandona a mesma, a gente se sente "chamada". Quantos a abandonam talvez não se exprimissem assim, mas sentem que, com toda a honestidade, não têm outra escolha do que a de rejeitar a fé.
Opção significa algo diverso: significa que, para um número crescente de pessoas no Ocidente ou na sociedade do Atlântico Norte, como também em outras partes do mundo, há uma compreensão de base da própria vida de fé/não fé: conhecem outras pessoas, inteligentes ou perceptivas quanto eles ou mais do que eles, que vivem outra opção. A idéia de que as pessoas que vivem no interior de outra fé sejam estranhas, moralmente deficientes ou tragicamente cegas se torna sempre menos crível. Alguns deles talvez sejam meus amigos, outros talvez meus parentes próximos. É isto que significa viver a fé como uma opção.
Como se chegou a isto?
Desencanto. A primeira forma se produziu num tempo antes longo, nos séculos, de fato.
Em 1500 os nossos antepassados na Europa viviam de um modo “encantado” (verzaubert); um modo repleto de espíritos e de forças morais, alguns perigosos (espíritos dos bosques), outros benévolos (relíquias, magia branca). Nos últimos séculos a maioria de nós deixou de ver ou – o que é ainda mais importante – de experimentar o mundo daquele modo. Somos impermeáveis a esta dimensão das coisas. Somos “personalidades tamponadas”. É esta uma das mudanças (a principal) que Weber define como Entzauberung [liberadas da magia].
A segunda mudança é mais recente, tendo se realizado mais ou menos no último século. Gostaria de falar de “desligamento”, fazendo referência a dois modos pelos quais a vida religiosa ligou conjuntamente no passado alguns aspectos da nossa vida (conexão), que ultimamente se separaram.
O primeiro é o seguinte: nos últimos dois séculos muitas sociedades europeias tem sido confessionais. As pessoas que pertenciam à Igreja nacional compartilhavam também tantas outras formas de pertencimento: família, paróquia e nação. Pertencer a uma delas significava, de norma, pertencer a todas. Os pertencimentos eram “ligados”. Mas, nas últimas décadas este entrelaçamento de pertencimentos se dissolveu. As pessoas com as quais compartilham a cidadania, ou os meus familiares, ou os vizinhos no País no qual vivo, não são necessariamente as mesmas com as quais compartilho a minha opção de fé.
No interior das Igrejas, além disso, na nossa civilização havia uma extraordinária variedade de atividades espirituais e de outro gênero. A liturgia, obviamente, mas também a celebração das festividades; a solenização dos ritos de passagem, mas também devoções especiais, novenas, peregrinações, preces à Virgem; e depois, as diversas organizações caritativas e as formas de ajuda recíproca; enfim, mais devoções privadas. Pessoas diversas se dedicavam de maneira diferenciada a estas atividades, mas todas eram vistas como parte da vida da Igreja.
Na sociedade contemporânea estas atividades frequentemente se dividem em entes específicos separados. Podem pertencer a uma Igreja, e depois também a Médicos sem fronteiras, e depois praticar qualquer forma de meditação, e assim por diante. Tudo em contextos ou organizações diferentes.
O que motivou estes desligamentos?
Em parte a maior mobilidade social, geográfica e internacional da vida moderna; o afastar-se de elos precedentes que isso comporta, as novas formas de individualismo que favorece. Mas também aquela forma particular que nós definimos como “ética de autenticidade”: a idéia que cada ser humano tem sua própria forma de ser humano e que deveria encontrar a própria forma de vida e realizá-la.
Na sociedade ocidental do século XX observamos um constante afastar-se de elos mais estritos com comunidades “ligadas” e o correspondente desejo, da parte dos mais jovens, de andar na sociedade mais vasta e encontrar o próprio caminho. O que contrabalança um pouco este processo são os grandes grupos de pessoas imigradas, que só podem sobreviver permanecendo unidas às suas comunidades coligadas. Mas, os seus filhos frequentemente procuram encontrar o próprio caminho na sociedade mais ampla.
O desencanto e o desligamento produziram uma paisagem espiritual diversa. Por exemplo: podemos ver na laicização dos rituais de vida uma consequência destas duas mudanças que operam juntas. As pessoas querem sempre recorrer a ritos de passagem para marcar as fases importantes na vida humana: nascimento, matrimônio, morte de pessoas queridas. Mas, no século XX, em muitas sociedades ocidentais as pessoas acabaram frequentemente por substituir os sacramentos da Igreja com rituais por eles mesmos ideados. É algo muito freqüente para os matrimônios e, de modo muito menos evidente, quando se trata de funerais. A morte é circundada de mistérios que um mundo antes secularizado tem dificuldade de domar.
Ou então, talvez aos ritos da Igreja tenha sido dada uma interpretação antes “imanente” de muitas pessoas que dela participaram. Trata-se de um fenômeno em evidência nas sociedades escandinavas, onde o pertencimento nacional e eclesial é ainda bastante desligado. Mas, o significado do pertencimento à Igreja muda. E é este o fenômeno que Grace Davie define como “pertencer sem crer”.
A contrabalançar isso, que é o fenômeno que ela mesma chama “crer sem pertencer”, observado, entre outros, na Inglaterra. O povo abandona a participação ativa na Igreja nacional, no entanto está feliz em saber que existe, fornecendo ritos à ocasião, mas também simplesmente assegurando a presença constante da fé na sociedade. Tal relação êxule que, todavia existe, constitui uma espécie de “religião vicária”.
Este fenômeno significa que talvez exageremos o grau de “secularização”, no sentido de abandono da religião, em algumas sociedades, mensurando-o simplesmente com base na redução da presença regular na igreja. Frequentemente, esta distância da Igreja reflete ambivalência, incerteza ou até algo mais positivo em vez de abandono da fé.
Jose Casanova indica que na Europa a secularização é, neste sentido, um revestimento, uma espécie de história oficial geralmente reconhecida sobre o que se supõe esteja acontecendo, antes do que uma acurada descrição dos fatos. Um efeito colateral divergente deste é que o povo, na Europa, respondendo às indagações, tende a diminuir a própria relação com a Igreja, enquanto na América estão mais aqueles que afirmam ir à igreja, do que aqueles que efetivamente vão. Estes americanos procuram conformar-se à sua história oficial.
E, naturalmente, a história oficial mais antiga da sociologia, segundo a qual a modernização leva inelutavelmente à secularização, é claramente desmentida pelo caso americano. Poder-se-ia afirmar que esta diferença pode em parte ser explicada pelo fato de que o 'desligamento' iniciou antes na América do que nas sociedades dominadas por uma Igreja nacional, que são comuns na Europa (e em Quebec).
A diferença não deriva tanto do fato de que nos Estados Unidos há competição religiosa, mas é antes e provavelmente devida ao fato de que o impacto da era da autenticidade, onde os que procuram tentam encontrar o próprio caminho espiritual, é diverso nas sociedades nas quais a opção religiosa é dominada por uma entidade oficial que exige conformidade com respeito às sociedades nas quais a fé já há dois séculos é irremediavelmente plural.
No primeiro contexto, a “religião” é manchada pela sua associação com o poder e a autoridade não conquistadas, e no segundo é privada desta conotação negativa.
"Glaube als Option: a fé como opção". É essa a descrição que Hans Joas propõe para a situação contemporânea da vida espiritual/religiosa no Ocidente. Opção que tem um significado diverso de escolha. As questões de fé e não-fé não se resolvem com facilidade, como se fosse feita a escolha de um cardápio. Quando se adota uma fé ou se abandona a mesma, a gente se sente "chamada". Quantos a abandonam talvez não se exprimissem assim, mas sentem que, com toda a honestidade, não têm outra escolha do que a de rejeitar a fé.
Opção significa algo diverso: significa que, para um número crescente de pessoas no Ocidente ou na sociedade do Atlântico Norte, como também em outras partes do mundo, há uma compreensão de base da própria vida de fé/não fé: conhecem outras pessoas, inteligentes ou perceptivas quanto eles ou mais do que eles, que vivem outra opção. A idéia de que as pessoas que vivem no interior de outra fé sejam estranhas, moralmente deficientes ou tragicamente cegas se torna sempre menos crível. Alguns deles talvez sejam meus amigos, outros talvez meus parentes próximos. É isto que significa viver a fé como uma opção.
Como se chegou a isto?
Desencanto. A primeira forma se produziu num tempo antes longo, nos séculos, de fato.
Em 1500 os nossos antepassados na Europa viviam de um modo “encantado” (verzaubert); um modo repleto de espíritos e de forças morais, alguns perigosos (espíritos dos bosques), outros benévolos (relíquias, magia branca). Nos últimos séculos a maioria de nós deixou de ver ou – o que é ainda mais importante – de experimentar o mundo daquele modo. Somos impermeáveis a esta dimensão das coisas. Somos “personalidades tamponadas”. É esta uma das mudanças (a principal) que Weber define como Entzauberung [liberadas da magia].
A segunda mudança é mais recente, tendo se realizado mais ou menos no último século. Gostaria de falar de “desligamento”, fazendo referência a dois modos pelos quais a vida religiosa ligou conjuntamente no passado alguns aspectos da nossa vida (conexão), que ultimamente se separaram.
O primeiro é o seguinte: nos últimos dois séculos muitas sociedades europeias tem sido confessionais. As pessoas que pertenciam à Igreja nacional compartilhavam também tantas outras formas de pertencimento: família, paróquia e nação. Pertencer a uma delas significava, de norma, pertencer a todas. Os pertencimentos eram “ligados”. Mas, nas últimas décadas este entrelaçamento de pertencimentos se dissolveu. As pessoas com as quais compartilham a cidadania, ou os meus familiares, ou os vizinhos no País no qual vivo, não são necessariamente as mesmas com as quais compartilho a minha opção de fé.
No interior das Igrejas, além disso, na nossa civilização havia uma extraordinária variedade de atividades espirituais e de outro gênero. A liturgia, obviamente, mas também a celebração das festividades; a solenização dos ritos de passagem, mas também devoções especiais, novenas, peregrinações, preces à Virgem; e depois, as diversas organizações caritativas e as formas de ajuda recíproca; enfim, mais devoções privadas. Pessoas diversas se dedicavam de maneira diferenciada a estas atividades, mas todas eram vistas como parte da vida da Igreja.
Na sociedade contemporânea estas atividades frequentemente se dividem em entes específicos separados. Podem pertencer a uma Igreja, e depois também a Médicos sem fronteiras, e depois praticar qualquer forma de meditação, e assim por diante. Tudo em contextos ou organizações diferentes.
O que motivou estes desligamentos?
Em parte a maior mobilidade social, geográfica e internacional da vida moderna; o afastar-se de elos precedentes que isso comporta, as novas formas de individualismo que favorece. Mas também aquela forma particular que nós definimos como “ética de autenticidade”: a idéia que cada ser humano tem sua própria forma de ser humano e que deveria encontrar a própria forma de vida e realizá-la.
Na sociedade ocidental do século XX observamos um constante afastar-se de elos mais estritos com comunidades “ligadas” e o correspondente desejo, da parte dos mais jovens, de andar na sociedade mais vasta e encontrar o próprio caminho. O que contrabalança um pouco este processo são os grandes grupos de pessoas imigradas, que só podem sobreviver permanecendo unidas às suas comunidades coligadas. Mas, os seus filhos frequentemente procuram encontrar o próprio caminho na sociedade mais ampla.
O desencanto e o desligamento produziram uma paisagem espiritual diversa. Por exemplo: podemos ver na laicização dos rituais de vida uma consequência destas duas mudanças que operam juntas. As pessoas querem sempre recorrer a ritos de passagem para marcar as fases importantes na vida humana: nascimento, matrimônio, morte de pessoas queridas. Mas, no século XX, em muitas sociedades ocidentais as pessoas acabaram frequentemente por substituir os sacramentos da Igreja com rituais por eles mesmos ideados. É algo muito freqüente para os matrimônios e, de modo muito menos evidente, quando se trata de funerais. A morte é circundada de mistérios que um mundo antes secularizado tem dificuldade de domar.
Ou então, talvez aos ritos da Igreja tenha sido dada uma interpretação antes “imanente” de muitas pessoas que dela participaram. Trata-se de um fenômeno em evidência nas sociedades escandinavas, onde o pertencimento nacional e eclesial é ainda bastante desligado. Mas, o significado do pertencimento à Igreja muda. E é este o fenômeno que Grace Davie define como “pertencer sem crer”.
A contrabalançar isso, que é o fenômeno que ela mesma chama “crer sem pertencer”, observado, entre outros, na Inglaterra. O povo abandona a participação ativa na Igreja nacional, no entanto está feliz em saber que existe, fornecendo ritos à ocasião, mas também simplesmente assegurando a presença constante da fé na sociedade. Tal relação êxule que, todavia existe, constitui uma espécie de “religião vicária”.
Este fenômeno significa que talvez exageremos o grau de “secularização”, no sentido de abandono da religião, em algumas sociedades, mensurando-o simplesmente com base na redução da presença regular na igreja. Frequentemente, esta distância da Igreja reflete ambivalência, incerteza ou até algo mais positivo em vez de abandono da fé.
Jose Casanova indica que na Europa a secularização é, neste sentido, um revestimento, uma espécie de história oficial geralmente reconhecida sobre o que se supõe esteja acontecendo, antes do que uma acurada descrição dos fatos. Um efeito colateral divergente deste é que o povo, na Europa, respondendo às indagações, tende a diminuir a própria relação com a Igreja, enquanto na América estão mais aqueles que afirmam ir à igreja, do que aqueles que efetivamente vão. Estes americanos procuram conformar-se à sua história oficial.
E, naturalmente, a história oficial mais antiga da sociologia, segundo a qual a modernização leva inelutavelmente à secularização, é claramente desmentida pelo caso americano. Poder-se-ia afirmar que esta diferença pode em parte ser explicada pelo fato de que o 'desligamento' iniciou antes na América do que nas sociedades dominadas por uma Igreja nacional, que são comuns na Europa (e em Quebec).
A diferença não deriva tanto do fato de que nos Estados Unidos há competição religiosa, mas é antes e provavelmente devida ao fato de que o impacto da era da autenticidade, onde os que procuram tentam encontrar o próprio caminho espiritual, é diverso nas sociedades nas quais a opção religiosa é dominada por uma entidade oficial que exige conformidade com respeito às sociedades nas quais a fé já há dois séculos é irremediavelmente plural.
No primeiro contexto, a “religião” é manchada pela sua associação com o poder e a autoridade não conquistadas, e no segundo é privada desta conotação negativa.
L‘Osservatore Romano, 06-03-2015.
*Tradução de Benno Dischinger.
Nenhum comentário:
Postar um comentário