Coco Chanel não só colaborou com os nazistas, mas se apropriou de ações de um sócio judeu.
Por Marco Lacerda*
A ocupação da França pela Alemanha nazista (1940-44) teria acontecido, segundo fontes não oficiais, não só porque Hitler considerava Paris a mais bela cidade do mundo, mas porque o fuhrer andava farto de ver as mulheres de altas patentes do regime viajarem à cidade-luz para se vestirem com aquela que na época já era tida como o principal referência da alta costura mundial. O vai-e-vem de socialites nazistas entre Berlim e Paris teria resultado na aproximação entre a sacerdotisa do chique e a alta hierarquia do Terceiro Reich.
Verdade ou não, o fato é que Gabrielle Bonheur Chanel, a estilista francesa que revolucionou o mundo da moda sob o nome de Coco Chanel, tornou-se uma espiã nazista. São muitos os documentos que comprovam o que até bem pouco era apenas uma suspeita. Um deles é uma biografia lançada nos Estados Unidos. Segundo a editora Knopf, "Chanel era mais do que uma simples simpatizante e colaboradora dos nazistas. Era uma agente numerada que trabalhava para a Abwehr, a inteligência militar alemã".
Sleeping with the Enemy: Coco Chanel's Secret War (Dormindo com o Inimigo, lançado no Brasil pela Companhia das Letras, escrito pelo jornalista americano Hal Vaughan, aborda detalhes do envolvimento da francesa com os nazistas, como seu número de agente na Abwehr, o F-7124.
Após buscar material em arquivos no Reino Unido, Alemanha, França e Estados Unidos, o jornalista, que integrou o Exército americano na Segunda Guerra Mundial, revela pela primeira vez documentos que detalham as extensas atividades de Chanel durante o conflito ocorrido entre 1939-1945.
De acordo com Vaughan, Chanel cumpriu missões para o serviço de inteligência nazista em Madri e Berlim, ao lado de seu amante, o oficial Hans Gunther Von Dincklage, algumas delas em nome do general da SS Walter Schellenberg, mão direita do comandante-chefe Heinrich Himmler.
A nova biografia revela a origem do antissemitismo da estilista e como ela foi recrutada para a inteligência nazista. Além disso, explica como Coco Chanel utilizou sua posição de espiã para receber favores, como a libertação de seu sobrinho detido e a tentativa de se apropriar dos bens de sócios judeus de sua marca.
O livro também revela como a rainha da moda conseguiu escapar da morte quando foi detida e posteriormente liberada em Paris, cidade na qual morreu, aos 71 anos, após nove anos de exílio na Suíça para recuperar sua reputação e reinventar a marca com a qual revolucionou o mundo da moda.
A mulher que fundou o império que leva seu nome, que transformou a maneira de vestir de milhões de mulheres e que comercializou o perfume mais prestigioso e conhecido (o Nº5), trabalhou clandestinamente para os serviços secretos alemães durante a ocupação francesa (1940-1944). Um livro biográfico entre a meia centena que foi publicada sobre o perfil deste emblema da França transformou em certeza há dois anos o que era uma suspeita até então: Coco Chanel foi recrutada pela espionagem alemã. Nesta semana, pela primeira vez, um veículo de comunicação francês – o canal de televisão estatal France 3– averiguou as profundezas de um aspecto da história que a França prefere com frequência ignorar: o colaboracionismo de um de seus grandes mitos contemporâneos.
“Chanel viveu quase toda a vida em grandes hotéis. Duas suítes do Ritz foram sua casa em Paris até sua morte, em 1971”.
Quando os alemães ocuparam Paris, em maio de 1940, Coco Chanel tinha 57 anos. Na época, já era uma referência mundial no universo da moda e uma empresária de prestígio com 4.000 empregados em vários ateliês. Ela, como outras celebridades da época, fugiu, assustada, para o sul do país para retornar a Paris pouco tempo depois. Os alemães desejavam manter a fama da cidade como capital das artes e do entretenimento e obtiveram o retorno de Chanel, do ator Jean Gabin e da bailarina e cantora Joséphine Baker, convertida secretamente também em espiã, mas neste caso a serviço dos aliados.
Durante duas horas, o programa mensal da canal de TVFrance 3, ‘A sombra de uma dúvida’, destrinchou recentemente, em um capítulo intitulado ‘Os artistas sob a ocupação’, o destino de um bom punhado de celebridades durante a ocupação alemã. O de Chanel resulta especialmente doloroso. A grande estilista não só voltou para Paris como também retornou à vida luxuosa no hotel Ritz e se apaixonou por Hans Günther von Dincklage, um diplomata alemão fluente em francês e que resultou ser um recrutador nazista de espiões. Por meio dele Chanel obteve a libertação de seu sobrinho Gabriel, que sempre se suspeitou ser filho da própria estilista.
Os dados e documentos revelados no programa da emissora France 3 são incontestáveis. No início da ocupação, aproveitando as novas normas antissemitas, Coco Chanel tentou arrebatar a seu sócio, o judeu Pierre Wertheimer, a empresa Bourjois, que comercializava o Chanel Nº 5. Não conseguiu. Wertheimer, sabedor dos perigos que o espreitavam, tinha colocado previamente suas ações em nome de um certo Félix Amiot, que as devolveu no fim da guerra. Para apresentar uma aparência de empresa renovada, Chanel, uma mulher altiva e de escassa empatia, despediu grande parte de seu pessoal; uma vingança, na verdade, pela greve que os empregados tinham realizado meses antes.
O estilo de vida de Chanel durante os anos de ocupação sempre levantou suspeitas na sociedade francesa. Hal Vaughan, um velho jornalista norte-americano, veterano da guerra, publicou em 2012 os dados que confirmavam tão incômoda suspeita. Gabrielle Bonheur Chanel, mais conhecida como Coco Chanel, figurava nos serviços alemães como a agente F-7124. A France 3 recuperou agora documentos inéditos do ministério de Defesa francês, da Prefeitura de polícia e do Arquivo Nacional da França que corroboram essa versão. De fato, a viagem que Coco Chanel realizou à Espanha em 1943 foi uma tentativa de utilizar suas ligações indiretas com o então primeiro-ministro britânico Winston Churchill para tentar que Londres concordasse em assinar a paz unilateralmente com Berlim. Uma missão fracassada.
Karl Lagerfeld: “A verdade não interessa. Uma lenda é uma lenda. Prefiro minha fantasia aos detalhes históricos”.
O fim da ocupação de Paris, em agosto de 1944, deu lugar, nos primeiros dias, à cruel perseguição de todo colaboracionista. Enquanto as turbas castigavam as mulheres raspando-lhes o cabelo, Coco Chanel foi detida e levada a um comitê de depuração que a interrogou durante algumas horas antes de liberá-la. Nunca mais foi incomodada. Ninguém investigou. Nenhum tribunal sequer interrogou a proprietária de um império da moda, a joalheira e a perfumista que mantinha esplêndidas relações com a aristocracia e a arte de todo o continente. Apesar disso, ela optou por um exílio dourado na Suíça que durou dez anos. Lá foi feita a última foto que se tem dela, datada de 1949, ao lado de seu charmoso amante alemão.
Coco Chanel voltou a Paris e retomou as luxuosas estadias no Ritz. Ali morreu milionária, em 1971, depois de ficar doente repentinamente, deitada em sua cama, perfeitamente vestida, penteada e maquiada, aos 88 anos de idade. Depois disso, poucos quiseram mexer no lado mais tenebroso de sua biografia.
A sobrinha-neta de Gabrielle Bonheur Chanel, Gabrielle Palasse, filha de Gabriel -aquele que foi salvo por Hans Günther von Dincklage-, confessou uma vez publicamente que nunca se atreveu a perguntar a Coco Chanel se na verdade era neta dela. Pierre Wertheimer terminou convencendo o gênio da moda para ficar com a empresa, embora mantivesse a grande Coco como sócia criativa e cobrisse todos os seus gastos até o fim. Os netos de Pierre, Gerard e Alain Wertheimer, são hoje os donos do império Chanel, que tem quase 200 lojas em todo o mundo. Empresa familiar não cotada em bolsa, a Chanel é a responsável pela fortuna dos Wertheimer, avaliada recentemente pela Bloomberg em 5,6 bilhões de euros (cerca de 17,8 bilhões de reais).
Em 1983, os novos gestores contrataram o estilista Karl Lagerfeld, extravagante e genial personagem. Esta é a opinião dele sobre Coco Chanel e seu lado escuro: “A verdade não nos diz respeito. Uma lenda é uma lenda. Prefiro minha fantasia aos detalhes históricos [...]. O que importa não é a realidade, a não ser a ideia que temos das coisas e das pessoas. Para mim, Chanel é uma ideia e isso é o que eu desenvolvo”.
Por dentro de Coco Chanel. Veja o vídeo:
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Domtotal.
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