A maioria das mulheres que acusam Cosby são brancas e eram jovens à época do alegado abuso
Uma orfandade abissal ronda a América negra. Mas ao contrário do pranto nacional pelas vítimas da recente fuzilaria na igreja de Charleston, este novo luto sequer pode ser assumido ou admitido de peito aberto. A dor coletiva e clandestina não é pela perda de alguém. É pela morte de uma ilusão.
A ilusão de que o patriarca Dr. Cliff Huxtable e sua família fictícia da série de televisão “Cosby Show" retratavam a efetiva inserção não conflituosa do negro na sociedade americana.
O fato do adorável Huxtable ser mero personagem de ficção parecia irrelevante. Ele era Bill Cosby, o idolatrado comediante-intérprete, e Cosby confundia-se com Huxtable no imaginário dos milhões de telespectadores. Várias gerações assistiram juntas aos 201 capítulos do sitcom mais marcante dos anos 1980. Através dele a classe média negra tomou assento na sala de visita dos lares americanos, (brancos inclusive) e passou a aplaudir o humor inofensivo e racialmente neutro de Cosby/Huxtable.
Na vida fora dos estúdios o comediante e ator caiu nas graças de Holywood, foi catapultado para a fama, amealhou fortuna e tornou-se a voz da sensatez a dar conselhos a comunidades negras desesperançadas e marginalizadas.
É do escritor e jornalista americano Ta Nehisi Coates, talvez o mais original pensador de assuntos raciais da atualidade, a definição de Cosby como um “negro conservador orgânico”, que acredita ser possível vencer através do esforço estritamente individual.
Essa espécie, alerta Coates, não deve ser confundida com a militância negra do Partido Republicano, mais empenhada em demonstrar à maioria branca que o racismo nos Estados Unidos deve ser considerado coisa do passado. Esses republicanos tem função de tranquilizar o eleitorado branco e são convidados frequentes do canal noticioso de direita Fox News.
Já os sermões que se tornaram marca registrada de Cosby sempre foram dirigidos à comunidade negra. Num famoso puxão de orelha lançado no ano passado Cosby classificou os jovens negros de hoje indignos de seus antepassados.
Ele sempre defendeu a necessidade do negro acreditar que precisa “ser duas vezes melhor” se quiser ser alguém e costumava elencar tópicos de comportamento como forma de evitar ataques raciais: falar corretamente, ter boas maneiras, estudar e obter um diploma, casar e formar família, cuidar bem dos filhos, procriar menos fora do lar, beber menos. Respeitabilidade era tudo.
Com o tempo, foi construindo um perfil moralmente sólido, inexpugnável para si mesmo e tranquilizou parte da classe média branca acenando com um modelo de país pós-racial.
Para a população afroamericana passou a representar o sonho consumado: era universalmente respeitado, além de poderoso, engraçado, boa gente, paternal, parceiro leal de um casamento de 41 anos, pai exemplar de quatro filhos, doador de U$ 20 milhões para o Spelman College de Atlanta, tradicional faculdade negra do estado da Georgia.
No início desta semana tudo isso ficou soterrado pela divulgação do documento legal que deu início ao doloroso desmonte do mito. Ao justificar sua decisão de tornar público trechos do depoimento de Cosby no processo de 2005 em que o comediante fora acusado de estupro, o juiz Eduardo Robrero da Filadelfia aludiu à dramática alteração na reputação nacional do acusado:
“O contraste gritante entre Bill Cosby o moralista público e Bill Cosby o alvo de sérias alegações de conduta imprópria (talvez criminosa) é tema de interesse profundo da agência noticiosa Associated Press e por extensão do público”.
Como se sabe, desde aquela primeira acusação de dez anos atrás uma galeria estarrecedora de 25 mulheres vieram a público para relatar abusos semelhantes. Eram tantas e de tantos quadrantes que surgiram suspeitas de que uma ou outra estivesse mentindo. Mas todas?
Alegações criminais falsas contra celebridades são corriqueiras. Mas que motivo teriam essas senhoras de meia idade, algumas já avós e cabelos grisalhos, com tanto a perder e nada a ganhar uma vez que todos os episódios já prescreveram? Por que repetir pela enésima vez que foram usadas e abusadas quando jovens por um dos homens mais queridos do país? Para que repetir que Bill Cosby era um estuprador em série que drogava suas vítimas se ele continuava imune e seus advogados desqualificavam as alegações de “delirantes”, “ridículas”, “fantasias”?
“Pela gana de um dia, talvez, conseguir recuperar a respeitabilidade da minha palavra", respondeu uma delas.
A maioria das mulheres que acusam Cosby são brancas e eram jovens à época do alegado abuso — dois fatores que dilaceram ainda mais os negros americanos, divididos entre a compulsão de se solidarizar com as vítimas e o lamento pela perda da figura paternal de Cosby.
O feminismo, escreve a professora de Estudos do Gênero Britney Cooper, da Universidade de Rutgers, jamais foi fator unificador do movimento nos Estados Unidos. “Uma espécie de luto coletivo está ocorrendo. Cosby era uma de nossas estrelas luminosas, o tipo de homem capaz de unir filhos e pais de nossa gente”.
Ao admitir em depoimento que usou um sedativo e hipnótico para fazer sexo com a jovem Andrea Constand em 1976, primeira vítima a acusá-lo de estupro, foi o próprio Cosby quem não honrou a luta dos antepassados contra a construção supremacista do predador negro que ronda donzelas brancas.
O busto de bronze do comediante que enfeitava o parque dos estúdios Disney , em Orlando, foi removido esta semana. “Lugar de predador não é no alto de um pedestal”, sentenciou Linda Traitz, uma das 25 mulheres que começam a sair do fundo do escuro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário