segunda-feira, 27 de julho de 2015

Mortos sem sepultura

Restos humanos guardados por nazistas são encontrados na França em frascos e provetas.

Por Marco Lacerda*
Restos de vítimas do anatomista nazista August Hirt, conservados em frascos e provetas cuja existência era desconhecida pelos pesquisadores, foram encontrados no Instituto Médico Legal de Estrasburgo, França, anunciou a prefeitura da cidade.
A descoberta foi feita no último dia 9, pelo historiador Raphaël Toledano, autor de trabalhos sobre o tema, entre eles um documentário dirigido por Emmanuel Heyd. Os restos pertencem a várias das 86 vítimas de um projeto de "coleção de esqueletos judaicos" que Hirt desejava realizar.
Com a ajuda do diretor do Instituto de Medicina Legal de Estrasburgo, professor Jean-Sébastien Raul, o pesquisador conseguiu identificar várias peças, entre elas "um frasco contendo fragmentos de pele de uma vítima das câmaras de gás", assinalou.
O pesquisador também encontrou "duas provetas, que continham o intestino e o estômago de uma vítima". A maioria dos restos, quase todos cortados em pedaços, havia sido encontrada pouco depois da libertação de Estrasburgo pelos aliados, em 1944, e foi rapidamente enterrada em um cemitério judaico.
Setenta anos após o final da II Guerra Mundial, ainda são encontradas novas provas dos horrores cometidos pelos nazistas. Neste caso foram localizados em frascos um intestino, um estômago e fragmentos de pele pertencentes à coleção de Hirt, que durante a guerra realizou na capital alsaciana numerosos experimentos letais com judeus procedentes de diversos campos de concentração de toda a Europa.
O instituto havia negado reiteradamente que sobraram restos humanos procedentes desses experimentos, apesar, em janeiro passado, o médico e divulgador Michel Cymés ter afirmado o contrário baseando-se em testemunhos de vários pesquisadores. O historiador Raphael Toledano, autor de vários trabalhos a respeito, tem sido agora o protagonista da descoberta. Baseou-se na minuciosa documentação elaborada após a guerra pelo professor Camille Simonin a pedido das autoridades militares da época.
Em carta datada de 1952, Simonin detalhava cada um dos restos que havia examinado em seu dia: 17 corpos e 225 fragmentos conservados em álcool. O Instituto Médico Legal afirmava que todos tinham sido incinerados e enterrados no cemitério judaico de Cronenburgo, a oeste de Estrasburgo, em 1946. Mas as pesquisas de Toledano levaram até uma sala fechada e muito pouco utilizada pelo instituto – e nela estavam os restos que faltavam. Serão entregues à comunidade judaica para serem enterrados.
Os órgãos e fragmentos encontrados faziam parte dos 86 corpos selecionados por Hirt. O médico nazista, nomeado diretor do instituto durante guerra e convencido de que o extermínio dos judeus seria total, recebeu autorização de Berlim para colecionar os 86 esqueletos e muitos de seus órgãos. As vítimas foram selecionadas em diversos campos de concentração e enviadas ao de Struthof-Natzweiller, o único construído no atual território francês e situado a 50 quilômetros de Estrasburgo. Ali foram assassinadas na câmara de gás sob a supervisão de Hirt.
Ao campo de Natzweiller foram enviadas 52.000 pessoas, das quais 22.000 morreram
Pouco antes do fim da guerra, e diante do inabalável avanço dos aliados, Hirt ordenou a decapitação de todos os cadáveres e a eliminação de todas as provas que pudessem identificar os restos, incluindo os números com que eram tatuados os prisioneiros dos campos. Num dos frascos, contudo, ficou a constância da referência 107969. Como ficou comprovado de imediato, correspondia ao número do judeu de Berlim Menachen Tafel, procedente de Auschwitz. A identidade dos 86 só foi revelada em 2004, graças ao empenho do jornalista alemão Hans Joachim Lang.
Mais de 52.000 pessoas de toda a Europa foram deportadas ao campo de Struthof-Natzweiler. Mais de 22.000 morreram de fome, frio, doenças ou em câmaras de gás. Os prisioneiros foram obrigados a trabalhar em um canteiro de obras das redondezas e em fábricas de armamento, às vezes subterrâneas. Um dos sobreviventes é o ex-membro da resistência francesa Pierre Rolinet, de 94 anos. Ele conta que Natzweiller era “um elo da indústria da morte” dos nazistas. “Os guardas nos surravam. Fui condenado à morte por transportar armas para a Resistência. E me salvei porque me levaram ao campo em abril de 1944, mas logo me levaram a Dachau diante do avanço dos aliados. Os norte-americanos me libertaram em abril de 1945.”
Em abril passado, o presidente François Hollande participou em Natzweiller da cerimônia pela celebração dos 70 anos do fim da guerra mundial. Ali, na presença de Rolinet e sua esposa, foi feita uma homenagem às vítimas do nazismo no campo e especialmente aos 86 assassinados por Hirt. O médico nazista cometeu suicídio em 1946, antes de ser julgado.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do DomTotal.

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