terça-feira, 27 de outubro de 2015

A ‘oncinha’ da família

Não comecei isto para falar de coisas tristes, mas para lembrar momentos meus, vividos com ela.
Por Lev Chaim*
Se tivesse viva, a minha irmã mais velha, Anna Maria, teria feito 79 anos ontem, dia 26 de outubro. Ela morreu em janeiro de 2015, após lutar com todas as forças para se recuperar de duas operações: a do joelho e a da aorta. Foi uma morte inesperada e eu nem pude ir ao enterro. Mas, não comecei isto para falar de coisas tristes, mas para lembrar momentos meus, vividos com ela.   
Quase todos os anos, quando menino, em Franca, vinha para São Paulo para que essa minha irmã, que lá morava, levar-me ao circo de Moscou ou ao Holliday On Ice. Adorava aqueles shows e acredito que ela também. Foi ai que descobri que ela tinha um fraco pelo teatro. Era quase um ritual. Na maioria das vezes, quem me trazia de Franca era a minha querida tia Sinhá, irmã de minha mãe. 
Já adolescente, recordo-me que fui com ela num cinema em São Paulo, para assistir ao filme dos Beatles- ‘Os reis do iê iê iê’. Em determinados momentos, o cinema inteiro se levantava e dançava, inclusive eu. A Anna Maria, nervosa, puxava o meu braço e dizia brava: “Senta menino, senta, no cinema não se dança!” Dai a dez minutos, levantava outra vez e ela gritava de novo, agora já com a língua de fora, cerrada entre os dentes, num gesto herdado de nossa mãe. 
Quando ela teve o primeiro e único filho, lembro-me como se fosse hoje. Ninguém podia chegar perto. Até respirar podia fazer mal ao pequeno. Minha outra irmã voltava do Rio com o marido, que era pediatra, e passaram por sua casa para visitar o sobrinho – o primeiro, um verdadeiro reizinho de toda a família. Eu estava lá e presenciei tudo. Anna Maria estava preocupada com os soluços do bebê. Nervosa, perguntou ao cunhado médico o que fazer. Ele, com um sorriso maroto, disse mansinho: “Passe um susto nele” ! 
Pra que? Ela virou uma onça. Neste meio tempo, o humor da casa já havia baixado muitos graus abaixo de zero e o meu cunhado, agora sério, disse que era brincadeira. Mesmo explicando tudo, ela não desistiu. Fechou a cara e foi fazer outras coisas. Depois de um tempo, ficamos todos com ‘a cara de tacho’. Ela era assim, não havia outra igual. Tanto podia alegrar tudo com a sua contagiante risada, como baixar o humor ambiente, tornando-o pesado, quase irrespirável.  
Aos poucos, apesar da diferença de idade entre a gente, eu - como o caçula e temporão e ela a mais velha -,  fui conhecendo-a melhor até descobrir o seu ponto fraco: uma enorme carência afetiva e coloque carência nisto. Quando alguém a elogiava, ela se derretia toda. Aprendi isto com as vendedoras das lojas e butiques, que eram especialistas em adular. Tanto é que ela tinha todos os guarda-roupas da casa cheios, lotados de coisas que ela nunca havia usado, apenas comprado e deixado na caixa, fechada, sem nunca ter aberto.  
Mas, vamos voltar um pouquinho no tempo, quando ela se formou na faculdade da USP e ganhou uma viagem de navio à Bueno Aires. Ela foi e se divertiu a beça em companhia de uma prima nossa. Na volta, ela foi à Franca e levou uma malha de caxemira para cada membro da família, cinco, com exceção de mim. Eles não tinham agasalhos infantis. Na época, eu nem me dei conta. 
Bem mais tarde, em São Paulo, quando morei com ela por dois anos, descobri uma coisa que me deixou boquiaberto e me fez rir a beça. Estávamos dando uma olhada em seus casacos e disse: “Maia, veja que malha mais linda e que cor bonita!”. Contente, ela disse: “Tenho bom gosto. Comprei-a em Buenos Aires, naquela vez”. Ai, perguntei quantas malhas ela havia comprado: “Vinte e seis malhas e dei cinco de presente!” – replicou ela. Imaginem vocês o espanto das vendedoras daquela loja e a da prima que a acompanhava.   
Essa compulsão por compras durou até o dia em que ela, em uma de nossas viagens, num quarto de um hotel em Paris, não conseguia fechar a mala e gritava: “Não fecha, ajudem-me aqui”. Seu marido se recusou e a minha mãe também. Todos a haviam advertido para que não comprasse tanto. Mas, eu fui socorrê-la. Só conseguimos fechar a dita cuja, após ela ter tirado várias coisas de sua mala e as ter enfiado na minha. Ai sim, deu certo e ela me encheu de beijos. 
Já mais velha, Anna Maria tornou-se mais mansa. No fundo, no fundo, ela queria agrado. Durante esses seus últimos anos, eu na Holanda e ela em São Paulo, falávamos diariamente por telefone. Nos últimos tempos via face-time. E ela me visitou três vezes aqui na Holanda. Após as operações por que passou, ela ficou presa em casa sem poder colocar os pés na rua, sentindo-se extremamente só. Seu herói era o Fred, seu único neto. Ele a fazia esquecer de seu retiro forçado. Deus no céu e Fred na Terra. 
Minha querida ‘oncinha’ Anna Maria. Rimos, brigamos, choramos juntos e nunca esquecemos de uma coisa importantíssima na vida: que amávamos um ao outro com todo o coração. Desde janeiro que sinto o dia mais longo, sem as suas chamadas, às vezes, até quatro vezes ao dia. Que pena que você não completou 79 anos e muito mais. Um beijo grande meu e de todos que a amavam, seja onde estiver! 
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o Domtotal.

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