quinta-feira, 29 de outubro de 2015

É possível um mês inteiro sem reclamar?

'As circunstâncias da vida, especialmente nos últimos anos, me tornaram um reclamão'.
Por Ricardo Soares*
Tenho em casa mas não li o livro “O Deus das pequenas coisas” da escritora indiana Arundhati Roy. Está na fila de leitura faz tempo mas sempre acabo adiando. Apesar de ter recebido excelentes referências do livro confesso que o comprei por impulso por conta do lindo título.
Pois pensei no título do livro de Arundhati quando esbarrei com a matéria do “El País Brasil” (versão digital)  cujo título era “Sua vida vai mudar se passar um mês sem reclamar”. Mais do que um decálogo de conselhos de autoajuda a matéria contava como mais de mil pessoas se uniram a uma iniciativa que propõe deixar de reclamar. Isso aconteceu na Europa e um dos comandantes da ação é um suíço. Tudo mais é impreciso mas vesti a carapuça.
As circunstâncias da vida, especialmente nos últimos anos, me tornaram um “reclamão” compulsivo mesmo que eu faça queixas em pretenso tom bem humorado, um tom cítrico que não oculta ironia e pode ser divertido mas é negativo. Se por um lado me incomoda essa ditadura de que todos devemos ser felizes por outro, convenhamos, ter um “urtigão” do lado todos os dias não é fácil.
Não acredito nesse esoterismo de almanaque de que só reclamar atrai energias negativas e trava os nossos caminhos.Até porque ser cordato, não reclamar e nem contestar convém a uma plêiade de poderosos de plantão que nos desgovernam todos os dias. Mas reclamar por nada, reclamar sem motivo, reclamar por questões menores e enxergar tudo e todos com tons plúmbeos também não é uma boa prática.
Um dos sujeitos que teve a iniciativa de passar um mês sem reclamar é um suíço chamado Thierry Blancplain. Ele esclarece que reclamar não é ruim por si só, e explicou que sua ideia é deixar de reclamar por coisas pequenas que, na verdade, não importam como “a chuva, o bebê que chora no restaurante, o chefe que te faz ficar uma hora a mais no escritório” e coisas assim. Tem lógica meu caro Blancplain muito embora eu não conheça o contexto suíço que vosmecê vive mas que deve ser bem diferente dessa barbárie civilizatória que ainda é o Brasil onde as pessoas sequer tem noção de que para entrar nos vagões do metrô é preciso que outros passageiros saiam antes. Como o senhor vê aqui fica mais difícil não reclamar o que, por outro lado, só torna nosso esforço nesse sentido ainda mais louvável.
Todos os dias quando acordo num país à deriva com um Executivo paralisado, um Legislativo corrupto e um Judiciário sob alta suspeição e quando vejo crise hídrica, polícia assassina, assaltos no atacado e varejo, imprensa completamente desvirtuada de suas “funções” originais fico a pensar que é realmente muito chato a sina de “reclamão”. Queria poder ver, ouvir e sentir “o Deus das pequenas coisas” nas questões menores cotidianas, nos olhares cúmplices que se cruzam nas ruas, no cachorro vadio que te acompanha do nada e na criança que estende a mão em busca do seu titubeante afago. Há beleza nisso tudo e talvez tenhamos que focar mais nesses detalhes. No entanto confesso minha total inabilidade em deixar de ser “reclamão”. Já tentei por alguns dias mas um mês sem reclamar só mesmo com um “Deus das grandes causas” para me ajudar.
*Ricardo Soares é diretor de tv, escritor, roteirista e jornalista. Autor de sete livros foi cronista dos jornais “O Estado de S.Paulo”, “Jornal da Tarde”, “Diário do Grande Abc”, “Metrô News” e da revista Rolling Stone.

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