No 60° aniversário de ‘Pedro Páramo’, acadêmicos continuam em busca do escritor revolucionário
Por Marco Lacerda*
‘Pedro Páramo’ é um romance curto escrito pelo autor mexicano Juan Rulfo, publicado em 1955, que alcançou em suas 23 edições mais de um milhão de cópias em todo o planeta. É seu segundo romance, posterior à coleção de contos ‘El llano em llamas’, e teve grande influência no desenvolvimento do realismo mágico com uma mistura de primeira e terceira pessoa. Gabriel García Márquez disse uma vez que não leu nada parecido desde a Metamorfose, de Franz Kafka. Jorge Luis Borges classificou o livro como um dos melhores romances da literatura mundial. Sobre a obra escreveu Susan Sontag: “O romance de Rulfo não é apenas uma das obras primas da literatura, mas um dos livros mais influentes do século”.
Pedro Páramo acumula duas importantes façanhas no mundo latino-americano das letras. A primeira é ter encerrado para sempre e com chave de outro a temática documental da revolução e a segunda é a de exercer o papel de fio condutor que marca a passagem do romance tradicional para a nova narrativa. Ambas as atribuições conferem ao romance de Rulfo um papel único no cenário latino-americano.
Em 1974, em uma conferência em Caracas diante de um auditório cheio de estudantes, Juan Rulfo disse: “Retirei várias páginas de Pedro Páramo, por volta de 100 páginas, mas depois nem eu mesmo o entendi”. Em 2015 completam-se seis décadas da publicação de sua principal obra e o enigma sobre a brincadeira do gênio mexicano, falecido em 1986, continua vigente. Em ‘Pedro Páramo, 60 anos’, editado pela Fundação Juan Rulfo, 18 acadêmicos ensaiam novas perspectivas de análise sobre um livro tão sucinto quanto inesgotável.
A complexidade de Rulfo é ligada a sua infância (órfão aos 10, enviado pelos avós a um internato) e a um dom, um puro milagre. Segundo o próprio autor, no entanto, o decisivo em sua formação foi ter acesso à biblioteca do padre de seu povoado, Ireneo Monroy, que levava livros das casas com a desculpa de verificar se eram permitidos, “mas o que fazia na realidade era ficar com eles”.
A erudição é uma das explicações da profundidade de Rulfo. Nos anos 40, estudou tanto o escritor Rainer Maria Rilke que traduziu de próprio punho parte de suas Elegias de Duino. Um ensaio relaciona Pedro Páramo com a Teoria Estética de Theodor W. Adorno, outro com o poeta romântico Jean Paul Richter. Outro acadêmico detalha que encontrou no livro “145 frases lapidares” e as divide em “máximas, vaticínios, opiniões e sentenças”. Uma pesquisadora da Universidade de Tóquio estabelece uma conexão com o teatro Noh japonês. Um acadêmico de Utah conta a história de John Gavin, galã de Hollywood que interpretou o caudilho Pedro Páramo na primeira adaptação cinematográfica do livro, fracassou e anos depois foi nomeado embaixador no México por Ronald Reagan.
Pedro Páramo é um relato rural no qual os mortos falam. Um ensaísta menciona o “aparente paradoxo de seu realismo e irrealismo ao mesmo tempo”. Outro, que o livro não pode ser lido “como história de fantasmas ou, de forma bem mais neutra, sequer como relato fantástico”. A breve obra, 100 ou 150 páginas segundo a edição, é um poço conceitual e uma mina aberta de beleza. Em um dos textos, o prosador Rulfo é definido como “o mais importante poeta mexicano do século XX”, entre outras coisas pela materialidade sonora de sua escrita: “A cama era de bambu coberta com sacos que fediam a urina, como se nunca tivessem sido colocados ao sol”. Uma acadêmica enfatiza o uso do “como se”. “Como se estivesse abandonado”. “Como se não existisse”. “Como se não tivesse sangue”. “Como se escutasse um rumor ao longe”. “Como se estivesse vendo cabras saltarem”.
Em outro texto é mencionada a sutil violência verbal da obra. Como esse diálogo entre Juan Preciado e o tropeiro Abundio Martínez:
“O caso é que nossas mães nos deram à luz em uma esteira, mesmo sendo filhos de Pedro Páramo. E o mais engraçado é que ele nos levou para sermos batizados. Com o senhor deve ter acontecido a mesma coisa, não?
– Não me lembro.
– Vá pra casa do caralho!
– O que você disse?
– Que já estamos chegando, senhor".
Outro aspecto chamativo da obra é a ausência de personagens indígenas. Só aparecem uma vez, quando vão a Comala para vender suas ervas. “Os índios chegam debaixo de chuva e vão embora debaixo de chuva”, diz o ensaísta que aborda o tema. Rulfo só escreveu três livros em toda sua carreira, nos anos 50, e o resto de sua vida foi dedicado ao Instituto Nacional Indigenista, onde se encarregou de editar uma das coleções mais importantes de antropologia contemporânea e antiga do México, apesar de nunca ter escrito sobre os índios. “Sua mentalidade é muito difícil de penetrar”, disse. Rulfo não foi capaz de conhecer os índios. Os estudiosos também não chegaram a conhecer Rulfo, mas continuarão tentando.
Uma entrevista com Juan Rulfo. Veja o vídeo:
Pedro Páramo acumula duas importantes façanhas no mundo latino-americano das letras. A primeira é ter encerrado para sempre e com chave de outro a temática documental da revolução e a segunda é a de exercer o papel de fio condutor que marca a passagem do romance tradicional para a nova narrativa. Ambas as atribuições conferem ao romance de Rulfo um papel único no cenário latino-americano.
Em 1974, em uma conferência em Caracas diante de um auditório cheio de estudantes, Juan Rulfo disse: “Retirei várias páginas de Pedro Páramo, por volta de 100 páginas, mas depois nem eu mesmo o entendi”. Em 2015 completam-se seis décadas da publicação de sua principal obra e o enigma sobre a brincadeira do gênio mexicano, falecido em 1986, continua vigente. Em ‘Pedro Páramo, 60 anos’, editado pela Fundação Juan Rulfo, 18 acadêmicos ensaiam novas perspectivas de análise sobre um livro tão sucinto quanto inesgotável.
A complexidade de Rulfo é ligada a sua infância (órfão aos 10, enviado pelos avós a um internato) e a um dom, um puro milagre. Segundo o próprio autor, no entanto, o decisivo em sua formação foi ter acesso à biblioteca do padre de seu povoado, Ireneo Monroy, que levava livros das casas com a desculpa de verificar se eram permitidos, “mas o que fazia na realidade era ficar com eles”.
A erudição é uma das explicações da profundidade de Rulfo. Nos anos 40, estudou tanto o escritor Rainer Maria Rilke que traduziu de próprio punho parte de suas Elegias de Duino. Um ensaio relaciona Pedro Páramo com a Teoria Estética de Theodor W. Adorno, outro com o poeta romântico Jean Paul Richter. Outro acadêmico detalha que encontrou no livro “145 frases lapidares” e as divide em “máximas, vaticínios, opiniões e sentenças”. Uma pesquisadora da Universidade de Tóquio estabelece uma conexão com o teatro Noh japonês. Um acadêmico de Utah conta a história de John Gavin, galã de Hollywood que interpretou o caudilho Pedro Páramo na primeira adaptação cinematográfica do livro, fracassou e anos depois foi nomeado embaixador no México por Ronald Reagan.
Pedro Páramo é um relato rural no qual os mortos falam. Um ensaísta menciona o “aparente paradoxo de seu realismo e irrealismo ao mesmo tempo”. Outro, que o livro não pode ser lido “como história de fantasmas ou, de forma bem mais neutra, sequer como relato fantástico”. A breve obra, 100 ou 150 páginas segundo a edição, é um poço conceitual e uma mina aberta de beleza. Em um dos textos, o prosador Rulfo é definido como “o mais importante poeta mexicano do século XX”, entre outras coisas pela materialidade sonora de sua escrita: “A cama era de bambu coberta com sacos que fediam a urina, como se nunca tivessem sido colocados ao sol”. Uma acadêmica enfatiza o uso do “como se”. “Como se estivesse abandonado”. “Como se não existisse”. “Como se não tivesse sangue”. “Como se escutasse um rumor ao longe”. “Como se estivesse vendo cabras saltarem”.
Em outro texto é mencionada a sutil violência verbal da obra. Como esse diálogo entre Juan Preciado e o tropeiro Abundio Martínez:
“O caso é que nossas mães nos deram à luz em uma esteira, mesmo sendo filhos de Pedro Páramo. E o mais engraçado é que ele nos levou para sermos batizados. Com o senhor deve ter acontecido a mesma coisa, não?
– Não me lembro.
– Vá pra casa do caralho!
– O que você disse?
– Que já estamos chegando, senhor".
Outro aspecto chamativo da obra é a ausência de personagens indígenas. Só aparecem uma vez, quando vão a Comala para vender suas ervas. “Os índios chegam debaixo de chuva e vão embora debaixo de chuva”, diz o ensaísta que aborda o tema. Rulfo só escreveu três livros em toda sua carreira, nos anos 50, e o resto de sua vida foi dedicado ao Instituto Nacional Indigenista, onde se encarregou de editar uma das coleções mais importantes de antropologia contemporânea e antiga do México, apesar de nunca ter escrito sobre os índios. “Sua mentalidade é muito difícil de penetrar”, disse. Rulfo não foi capaz de conhecer os índios. Os estudiosos também não chegaram a conhecer Rulfo, mas continuarão tentando.
Uma entrevista com Juan Rulfo. Veja o vídeo:
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do DomTotal
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