Uma já seria excesso, mas há seis, fundidas pelo oportunismo político, mercantilismo e ignorância.
Por Marcos Caldeira Mendonça*
Até o fechamento desta edição, havia seisestátuas de Carlos Drummond de Andrade em praça pública itabirana: na área externa do Centro Cultural, no jardim da Câmara de Vereadores, no trevo do bairro Areão, no Memorial Drummond, na Casa do Pontal e na entrada da Escola Municipal Coronel José Batista. Esta é a mais recente, instalada em julho, feita por Pedro Saenz. A do Areão é de autoria de Virgínia Ferreira e as demais foram esculpidas pelo cartunista e caricaturista itabirano Luiz Eugênio Quintão Guerra (Genin).
É a Itabira que rima com Sucupira, aquela ridícula cidade fictícia criada por Dias Gomes. Itabira, Sucupira, que tal Sucubira? Tirando o humor, a coisa não tem graça nenhuma. Esse absurdo povoamento de estátuas de Drummond em Itabira define com fidelidade de espelho o equívoco com que principalmente o poder público trata a obra do poeta. Em vez de criar formas exitosas para disseminar os textos do genial autor, usa excessivamente o nome e a efígie dele, causando um esgotamento da imagem do escritor – há até estátua de Drummond, a do Centro Cultural, mirando outra estátua de Drummond, a da câmara. Uma já seria excesso, já teria de causar debate, já seria motivo para arranca-rabo, mas até passaria, se executada com grande engenho, agora seis é abusar do direito, que ninguém tem, de estropiar a memória do autor de Boitempo. Nem é preciso ter senso estético aguçado para condenar tamanho abuso, basta uma chispa de desconfiômetro.
Homenagem, tentam justificar, mas o argumento é frágil. Drummond prezava a discrição, era avesso a badalações, tanto que jamais aceitou integrar a Academia Brasileira de Letras. A obra que deixou não combina com estátuas, ele mesmo escreveu textos ridicularizando o homem de bronze. Ora, ora, pé de amora, o maior preito que se pode prestar ao poeta é ler seus livros, mergulhar em seus textos. Lá estão a beleza, o conhecimento, a cidadania, o prazer, o amor a Itabira, o protesto, a profunda escavação do humano.
Essa fazeção de estátuas em Itabira, que a faz ombrear com cidades de quinta, nasce, quase sempre, em gabinetes de políticos bobos. Notam que se aproxima importante data drummondiana, sentem a necessidade de fazer algo e, como não conseguem engendrar nada relevante e são mal assessorados, decidem fazer estátua. É o mais fácil, não precisam pensar, não terão trabalho e ainda há a conveniência de exibir o nome deles ao lado do de Drummond na placa de inauguração. “Uau, que glória para mim”, devem raciocinar.
Um programa bem-sucedido para levar a obra do poeta às escolas, de forma leve, lúdica? Um evento anual de literatura, com a grandeza de Drummond? Um concurso literário de alto nível? Uma jardineira lotada de livros a rodar pelos bairros e zona rural, despejando o prazer da literatura? Não, de jeito nenhum, tudo isso dará muito trabalho, a começar por ter de entender a importância dessas ações. Bem melhor é fazer estátua. Assim são criadas tralhas horrendas como o busto fixado na entrada da Câmara de Vereadores, sobre uma peça de mármore: troço fúnebre, triste, baixo astral, deprimente, tumular.
Os políticos participam com a ignorância e o oportunismo de pegar carona no nome de Drummond. Os fazedores de estátuas entram com o desejo de embolsar caraminguás do cofre público e com a vaidade de terem em praça pública uma obra deles. Sim, senhor, os escultores também têm culpa nesse povoamento de estátua de Drummond em Itabira. Não justifica alegar que são apenas contratados para “executar o serviço”. Os matadores de aluguel também são contratados apenas para “executar o serviço”. Não convém “executar o serviço” sem questionamentos éticos. Ademais, como artistas, deviam ser os primeiros a condenar a banalização e mercantilização da imagem de um poeta.
E pensar que Itabira gastou dinheiro público para criar essa multidão de estátuas. Apenas para comparar, a confecção da estátua de um burrico instalada no distrito de Ipoema pela prefeitura, em 2014, custou R$ 116 mil. É muito prejuízo junto: consome-se grana do povo para estropiar a obra de Drummond e ainda faz Itabira servir de chacota – não é sem motivo que a cidade vem sendo chamada de Drummonlândia Brasil afora.
Há mais problemas. Dessas seis estátuas de Drummond, quatro são de um mesmo autor: Luís Eugênio Quintão Guerra, o Genin. Somam-se a esse quarteto outras estátuas de itabiranos, também feitas por Genin e instaladas em locais públicos de Itabira: do cantor Newton Baiandeira e do bispo Mário Teixeira Gurgel, entre outras. Animais também são fundidos por ele, como o mencionado burrico de Ipoema. Portanto, há estátuas demais de Drummond, há estátuas demais em geral e há estátuas demais feitas por Genin.
Imagine Roma e Paris repletas de estátuas majoritariamente feitas por apenas um escultor... Aliás, nem convém mencionar tais cidades. Citá-las pode levar algum abilolado a defender o povoamento de estátuas em Itabira sob o argumento de que as capitais italiana e francesa também são cheias de esculturas. Quem o fizer será merecedor de um apocalipse só para ele, exclusivo. Outro argumento robusto contra essa desmiolada fazeção de estátuas em Itabira é a precária condição urbana da cidade: praças, passeios, jardins e parques em cacos; monumentos escangalhados; centro histórico todo pichado; sobrados ruindo e muitos, muitos outros problemas.
Ainda que estátuas sejam admitidas como ornamento, não faz sentido instalá-las numa cidade em pandarecos. Fazê-lo seria como colocar a cereja num bolo que ainda não ficou pronto. Estátua é mesmo homenagem? O senso comum diz sim, mas grandes cabeças já disseram não. “De bustos e estátuas não sou lá grande entusiasta”, comentou Rui Barbosa: “Um homem em metal ou pedra me parece duas vezes morto. Muito pode valer a estátua pelo merecimento de obra-prima. Mas então o seu lugar adequado será o museu.
Perdido nos salões das bibliotecas, ou isolado, entre a multidão, no vazio das praças, a mim se me afigura uma espécie de consagração do esquecimento”. O que diria o jurista baiano se visse em Itabira um mesmo humano seis vezes petrificado em praça pública? Eis a sentença do poeta gaúcho Mario Quintana quando foi cogitada a ideia de criar uma estátua dele em Porto Alegre: “Um engano em bronze é um engano eterno”.
Estátuas também mostram um quê de desespero, pela bizarria de tentar vencer a precariedade da vida humana por meio do objeto inanimado. Têm boca, mas não falam; ouvidos, mas não ouvem; olhos, mas não veem. Sabe quem refletiu sobre esse ridículo? Ele mesmo, Drummond. Está no livro O Avesso das Coisas: “A estátua não faz reviver o grande homem, porém serve de ponto de referência para transeuntes”.
Quando se noticiou que o Rio fixaria um Drummond de bronze em Copacabana, estudiosos da obra do itabirano reagiram. “Não deixa de ser até um pouco grotesco imaginar que hoje alguém esteja fundindo estátua de Drummond. O poeta vai virar ferro, pedra, pasto de pombos, tudo o que evitou liricamente durante 84 anos de vida”, criticou na revista Cult o jornalista Heitor Ferraz Mello, mestre em literatura brasileira pela USP. Estátuas podem ser de ferro, bronze, cimento, metal, alumínio, madeira... As de Drummond em Itabira bem que podiam ser de neve. O calor do sol derreteria tantos equívocos.
É a Itabira que rima com Sucupira, aquela ridícula cidade fictícia criada por Dias Gomes. Itabira, Sucupira, que tal Sucubira? Tirando o humor, a coisa não tem graça nenhuma. Esse absurdo povoamento de estátuas de Drummond em Itabira define com fidelidade de espelho o equívoco com que principalmente o poder público trata a obra do poeta. Em vez de criar formas exitosas para disseminar os textos do genial autor, usa excessivamente o nome e a efígie dele, causando um esgotamento da imagem do escritor – há até estátua de Drummond, a do Centro Cultural, mirando outra estátua de Drummond, a da câmara. Uma já seria excesso, já teria de causar debate, já seria motivo para arranca-rabo, mas até passaria, se executada com grande engenho, agora seis é abusar do direito, que ninguém tem, de estropiar a memória do autor de Boitempo. Nem é preciso ter senso estético aguçado para condenar tamanho abuso, basta uma chispa de desconfiômetro.
Homenagem, tentam justificar, mas o argumento é frágil. Drummond prezava a discrição, era avesso a badalações, tanto que jamais aceitou integrar a Academia Brasileira de Letras. A obra que deixou não combina com estátuas, ele mesmo escreveu textos ridicularizando o homem de bronze. Ora, ora, pé de amora, o maior preito que se pode prestar ao poeta é ler seus livros, mergulhar em seus textos. Lá estão a beleza, o conhecimento, a cidadania, o prazer, o amor a Itabira, o protesto, a profunda escavação do humano.
Essa fazeção de estátuas em Itabira, que a faz ombrear com cidades de quinta, nasce, quase sempre, em gabinetes de políticos bobos. Notam que se aproxima importante data drummondiana, sentem a necessidade de fazer algo e, como não conseguem engendrar nada relevante e são mal assessorados, decidem fazer estátua. É o mais fácil, não precisam pensar, não terão trabalho e ainda há a conveniência de exibir o nome deles ao lado do de Drummond na placa de inauguração. “Uau, que glória para mim”, devem raciocinar.
Um programa bem-sucedido para levar a obra do poeta às escolas, de forma leve, lúdica? Um evento anual de literatura, com a grandeza de Drummond? Um concurso literário de alto nível? Uma jardineira lotada de livros a rodar pelos bairros e zona rural, despejando o prazer da literatura? Não, de jeito nenhum, tudo isso dará muito trabalho, a começar por ter de entender a importância dessas ações. Bem melhor é fazer estátua. Assim são criadas tralhas horrendas como o busto fixado na entrada da Câmara de Vereadores, sobre uma peça de mármore: troço fúnebre, triste, baixo astral, deprimente, tumular.
Os políticos participam com a ignorância e o oportunismo de pegar carona no nome de Drummond. Os fazedores de estátuas entram com o desejo de embolsar caraminguás do cofre público e com a vaidade de terem em praça pública uma obra deles. Sim, senhor, os escultores também têm culpa nesse povoamento de estátua de Drummond em Itabira. Não justifica alegar que são apenas contratados para “executar o serviço”. Os matadores de aluguel também são contratados apenas para “executar o serviço”. Não convém “executar o serviço” sem questionamentos éticos. Ademais, como artistas, deviam ser os primeiros a condenar a banalização e mercantilização da imagem de um poeta.
E pensar que Itabira gastou dinheiro público para criar essa multidão de estátuas. Apenas para comparar, a confecção da estátua de um burrico instalada no distrito de Ipoema pela prefeitura, em 2014, custou R$ 116 mil. É muito prejuízo junto: consome-se grana do povo para estropiar a obra de Drummond e ainda faz Itabira servir de chacota – não é sem motivo que a cidade vem sendo chamada de Drummonlândia Brasil afora.
Há mais problemas. Dessas seis estátuas de Drummond, quatro são de um mesmo autor: Luís Eugênio Quintão Guerra, o Genin. Somam-se a esse quarteto outras estátuas de itabiranos, também feitas por Genin e instaladas em locais públicos de Itabira: do cantor Newton Baiandeira e do bispo Mário Teixeira Gurgel, entre outras. Animais também são fundidos por ele, como o mencionado burrico de Ipoema. Portanto, há estátuas demais de Drummond, há estátuas demais em geral e há estátuas demais feitas por Genin.
Imagine Roma e Paris repletas de estátuas majoritariamente feitas por apenas um escultor... Aliás, nem convém mencionar tais cidades. Citá-las pode levar algum abilolado a defender o povoamento de estátuas em Itabira sob o argumento de que as capitais italiana e francesa também são cheias de esculturas. Quem o fizer será merecedor de um apocalipse só para ele, exclusivo. Outro argumento robusto contra essa desmiolada fazeção de estátuas em Itabira é a precária condição urbana da cidade: praças, passeios, jardins e parques em cacos; monumentos escangalhados; centro histórico todo pichado; sobrados ruindo e muitos, muitos outros problemas.
Ainda que estátuas sejam admitidas como ornamento, não faz sentido instalá-las numa cidade em pandarecos. Fazê-lo seria como colocar a cereja num bolo que ainda não ficou pronto. Estátua é mesmo homenagem? O senso comum diz sim, mas grandes cabeças já disseram não. “De bustos e estátuas não sou lá grande entusiasta”, comentou Rui Barbosa: “Um homem em metal ou pedra me parece duas vezes morto. Muito pode valer a estátua pelo merecimento de obra-prima. Mas então o seu lugar adequado será o museu.
Perdido nos salões das bibliotecas, ou isolado, entre a multidão, no vazio das praças, a mim se me afigura uma espécie de consagração do esquecimento”. O que diria o jurista baiano se visse em Itabira um mesmo humano seis vezes petrificado em praça pública? Eis a sentença do poeta gaúcho Mario Quintana quando foi cogitada a ideia de criar uma estátua dele em Porto Alegre: “Um engano em bronze é um engano eterno”.
Estátuas também mostram um quê de desespero, pela bizarria de tentar vencer a precariedade da vida humana por meio do objeto inanimado. Têm boca, mas não falam; ouvidos, mas não ouvem; olhos, mas não veem. Sabe quem refletiu sobre esse ridículo? Ele mesmo, Drummond. Está no livro O Avesso das Coisas: “A estátua não faz reviver o grande homem, porém serve de ponto de referência para transeuntes”.
Quando se noticiou que o Rio fixaria um Drummond de bronze em Copacabana, estudiosos da obra do itabirano reagiram. “Não deixa de ser até um pouco grotesco imaginar que hoje alguém esteja fundindo estátua de Drummond. O poeta vai virar ferro, pedra, pasto de pombos, tudo o que evitou liricamente durante 84 anos de vida”, criticou na revista Cult o jornalista Heitor Ferraz Mello, mestre em literatura brasileira pela USP. Estátuas podem ser de ferro, bronze, cimento, metal, alumínio, madeira... As de Drummond em Itabira bem que podiam ser de neve. O calor do sol derreteria tantos equívocos.
Notas: *Marcos Caldeira Mendonça é editor do jornal O Trem Itabirano
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