sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Os bichos de lá

Inevitável não escrever algumas linhas sobre o desastre ecológico da região de Mariana.

Por Fernando Fabbrini
Inevitável passar batido e não escrever algumas linhas sobre o desastre ecológico da região de Mariana. Cansei de ver; os jornais, a TV e a internet estão repletos de informações, a coisa foi feia, mexeu com as almas, sentimentos e histórias de vida de milhares. Não vou aqui repetir os diagnósticos, teorias, acusações ou suposições técnicas, já tem gente falando demais. Prefiro refletir em silêncio e aguardar. Na verdade, no papel de espectadores, é a única saída que nos resta por enquanto.
Nesses eventos trágicos acontece comigo uma coisa estranha. Depois do impacto inicial, do susto, esqueço o desastre em si, não especulo sobre as prováveis causas, não corro à internet para avaliar interpretações do drama. Imediatamente, minha atenção cria um filtro para tantas informações e se volta carinhosamente para as pessoas e suas pequenas rotinas de vida interrompidas. Foi por isso que meu primeiro nó na goela veio ao ouvir, de passagem, a entrevista de uma senhora, dona de casa, humilde e simplória. Perguntada pela repórter sobre como tinha escapado, ela abriu um sorriso triste e, visivelmente abatida, disse a frase que me comoveu até às entranhas:
- Minha filha, só dei conta de passar a mão numas roupas no varal e ajuntar uns pintinhos que eu estava criando no galinheiro...”
De posse dos vestidos desbotados, ainda úmidos e cheirando a sabão, ela deve ter agarrado seus pequenos tesouros que piavam assustados e botado todos numa sacola. Com dificuldade e quase sem fôlego, escalou o barranco, escorregando sobre as velhas sandálias havaianas, deixando o quintal para trás e para sempre. Os pintinhos talvez fizessem parte do projeto de um futuro galinheiro com poleiros improvisados com cabos de vassoura, onde ela colheria, orgulhosa, meia dúzia de ovos todas as manhãs.
De imediato, também pensei nos cachorros – certamente simpáticos vira-latas – que cochilavam à sombra das mangueiras no calor daquela tarde. Sentiram a terra vibrando, ouviram o barulho esquisito, levantaram as orelhas por um segundo e tudo acabou. Só espero que tenha sido uma coisa rápida, indolor, sem remexer desesperado de patas, sem tentativas inúteis de manter os focinhos acima do barro que os engolia. Rex, Pipoca, Chico, Pretinha, Ringo e Princesa vão fazer falta aos seus donos – crianças, idosos, mocinhas que os enfeitavam com coleiras baratas de plástico colorido.
Já com os gatos, a coisa é um pouco melhor. Sabe-se que os felinos têm um sexto sentido poderoso e assim – meio bruxos que são - devem ter pressentido a avalanche e, saltando rumo às árvores e telhados, se safaram com suas sete vidas intactas. Fico na torcida dos bichanos.
Claro que lembrei-me também dos bois, cavalos e burros daquela zona rural. Diferentes dos gatos, com sua leveza e salto infalível, estes devem ter sofrido demais, pesados e lentos que são. Afundavam rapidamente e, se encontrados com vida, era quase impossível rebocá-los de volta à terra firme. A cena de pesadelo por mim imaginada circulou ao vivo em poucas horas: ali estavam cobertos de lama e na condição pavorosa que eu temia. Alguns já mortos; outros ainda se debatiam, feridos pelas cercas de arame farpado, entulhos, pedras soltas, trombadas contra os muros e pela força dos próprios cascos.
Os passarinhos e as aves maiores, de asas espertas, escaparam sem problemas - ao contrário de seus pobres primos moradores dos galinheiros. Infelizmente, nos rios, onde ainda era possível sobreviver apesar da sujeira crescente da chamada civilização, os peixes não tiveram qualquer chance.
Paro neste ponto antes que o leitor censure minha comoção excessiva pelos animais em detrimento do drama das pessoas que se foram, de suas casas destruídas e dos parentes desaparecidos. Porém, fiz questão de deixar aqui meu registro solidário aos bichos de Bento Rodrigues e arredores. Desde criança tenho os animais em altíssima conta, mas não quero ser mal interpretado. Óbvio que, no centro de toda essa história triste, existe principalmente gente sofrendo - e essa dor eu a sinto profunda, como se fosse uma dor minha também, inenarrável com as palavras de uma simples crônica. 
Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.

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