A batucada já esquentava e o sol também.
Por Fernando Fabbrini*
Tinha passado todo o mês de janeiro na dúvida se saía ou não no “Você Pensa?” bloquinho de Carnaval da turma. Ele pensava assim: de um lado, era uma festa burguesa, onde dominavam as multinacionais do setor de cerveja e a mídia golpista. O evento também recebia patrocínio – explícito ou oculto – dos governantes, que aproveitavam o clima para se promoverem junto ao povão. De outro lado, não poderia desprezar as reflexões do Beto, militante como ele, que definia o Carnaval como “uma expressão autêntica da nossa diversidade; um resgate e uma reverência justa às nossas origens quilombolas; exuberância das curvas primitivas da mulher brasileira ao som dos tambores – os quais ressoam a nossa indignação irreverente e revolucionária frente ao sistema perverso repressivo neoliberal.”
Fumou quase meio maço recostado na janela até que resolveu botar a fantasia – coisa colorida, com desenho de uma garrafa de pinga nas mãos de uma bonitona. Olhou-se no espelho, achou-se meio estranho. Pegou os documentos, a chave de casa e caminhou, relutante, até a praça – ponto de encontro da turma. Já estavam todos lá, só faltava ele.
- Diga aí, Chicão! Beleza?
- Bom que você veio!
A batucada já esquentava e o sol também. Passou por ele o sujeito do isopor, com as latinhas de cerveja e refrigerante. Apontou para a mistura de água e gelo onde elas boiavam:
- Quanto o latão?
- Déreal, meu irmão.
- O quê? Dez reais numa lata de cerveja?
- É carnaval, querido, relaxa e mama!
- Peraí, cara! Você está se valendo de um evento popular de massa para exercer sua ambição capitalista. Segundo Marx, a miséria se perpetua no mundo mediante os baixos salários oferecidos aos operários, enquanto os patrões e intermediários desfrutam dos lucros absurdos...
O vendedor não prestou atenção e continuou gritando “Olha a cerveja aqui! Geladinha!”
Contrariado, enfiou a mão no bolso da bermuda e puxou a nota de dez. O resto da turma estava enfileirado, feliz, e se preparava para cantar o enredo do “Você Pensa?”, aquela velha marchinha de 1953 – com uma releitura de ritmo e um novo olhar sobre a letra. Batucaram a introdução e puxaram o coro:
“Você pensa que cachaça é água...Cachaça não é água não...Cachaça vem do alambique... E água vem do ribeirão...”
A coisa pegou fogo. As mulheres do bloco – lindas, com suas fantasias de isopor recortado na forma de cana de açúcar – rebolavam e balançavam os braços, lançando olhares e sorrisos para quem quisesse.
“Pode me faltar tudo na vida / Arroz feijão e pão / Pode me faltar manteiga / E tudo mais não faz falta não / Pode me faltar o amor / Há, há, há, há! /Isto até acho graça /Só não quero que me falte / A danada da cachaça!”
Não suportou ouvir aquilo. Do lado, junto à cerca da praça, havia um banco vazio. Deu um gole na cerveja, subiu no tal banco e agitou os braços:
- Pessoal, pessoal, questão de ordem!
Todos se voltaram, surpresos. Esperou um minuto para que a turma lhe desse ouvidos.
- Fala logo aêo! – alguém gritou.
- Acho que a gente deveria fazer uma reflexão em torno do conteúdo dessa letra. Há algumas contradições e conceitos que merecem um debate.
Todos se entreolharam. Os tamborins deram um tempo enquanto o pessoal renovava a cerveja.
- Primeiro: o ribeirão não fornece mais água pura, uma vez que as mineradoras estão poluindo tudo. Depois, a cachaça não vem do alambique artesanal de outrora. Todos sabem que as multinacionais dominam o mercado de destilados e a produção massiva é dirigida aos segmentos de baixa renda... Ao cantar “pode me faltar tudo na vida”, vocês tão fazendo uma crítica leviana à atual conjuntura nacional. A alta de preços do arroz, do feijão, do pãozinho e da manteiga é um problema sazonal que vem sendo enfrentado com muita coragem pelo Governo. O agronegócio tem um lobby poderoso no Congresso e usa suas armas, tentando solapar as política públicas que nossa Presidenta tenta implantar...
Engoliu o resto da cerveja, limpou a barba e finalizou:
- E esse lance de “só não quero que me falte a danada da cachaça” é uma tremenda alienação! Estamos fazendo o jogo dos coronéis do nordeste, famílias tradicionais que detêm os latifúndios e as usinas... Não nos podem faltar é liberdade, catraca livre, gratuidade no ensino e uma série de reivindicações que já listamos. Assim, já que está todo mundo aqui, proponho uma assembleia; vamos nos concentrar na praça, tirar uma palavra de ordem, subir a avenida em passeata e manifestar na frente ao...
Tinha passado todo o mês de janeiro na dúvida se saía ou não no “Você Pensa?” bloquinho de Carnaval da turma. Ele pensava assim: de um lado, era uma festa burguesa, onde dominavam as multinacionais do setor de cerveja e a mídia golpista. O evento também recebia patrocínio – explícito ou oculto – dos governantes, que aproveitavam o clima para se promoverem junto ao povão. De outro lado, não poderia desprezar as reflexões do Beto, militante como ele, que definia o Carnaval como “uma expressão autêntica da nossa diversidade; um resgate e uma reverência justa às nossas origens quilombolas; exuberância das curvas primitivas da mulher brasileira ao som dos tambores – os quais ressoam a nossa indignação irreverente e revolucionária frente ao sistema perverso repressivo neoliberal.”
Fumou quase meio maço recostado na janela até que resolveu botar a fantasia – coisa colorida, com desenho de uma garrafa de pinga nas mãos de uma bonitona. Olhou-se no espelho, achou-se meio estranho. Pegou os documentos, a chave de casa e caminhou, relutante, até a praça – ponto de encontro da turma. Já estavam todos lá, só faltava ele.
- Diga aí, Chicão! Beleza?
- Bom que você veio!
A batucada já esquentava e o sol também. Passou por ele o sujeito do isopor, com as latinhas de cerveja e refrigerante. Apontou para a mistura de água e gelo onde elas boiavam:
- Quanto o latão?
- Déreal, meu irmão.
- O quê? Dez reais numa lata de cerveja?
- É carnaval, querido, relaxa e mama!
- Peraí, cara! Você está se valendo de um evento popular de massa para exercer sua ambição capitalista. Segundo Marx, a miséria se perpetua no mundo mediante os baixos salários oferecidos aos operários, enquanto os patrões e intermediários desfrutam dos lucros absurdos...
O vendedor não prestou atenção e continuou gritando “Olha a cerveja aqui! Geladinha!”
Contrariado, enfiou a mão no bolso da bermuda e puxou a nota de dez. O resto da turma estava enfileirado, feliz, e se preparava para cantar o enredo do “Você Pensa?”, aquela velha marchinha de 1953 – com uma releitura de ritmo e um novo olhar sobre a letra. Batucaram a introdução e puxaram o coro:
“Você pensa que cachaça é água...Cachaça não é água não...Cachaça vem do alambique... E água vem do ribeirão...”
A coisa pegou fogo. As mulheres do bloco – lindas, com suas fantasias de isopor recortado na forma de cana de açúcar – rebolavam e balançavam os braços, lançando olhares e sorrisos para quem quisesse.
“Pode me faltar tudo na vida / Arroz feijão e pão / Pode me faltar manteiga / E tudo mais não faz falta não / Pode me faltar o amor / Há, há, há, há! /Isto até acho graça /Só não quero que me falte / A danada da cachaça!”
Não suportou ouvir aquilo. Do lado, junto à cerca da praça, havia um banco vazio. Deu um gole na cerveja, subiu no tal banco e agitou os braços:
- Pessoal, pessoal, questão de ordem!
Todos se voltaram, surpresos. Esperou um minuto para que a turma lhe desse ouvidos.
- Fala logo aêo! – alguém gritou.
- Acho que a gente deveria fazer uma reflexão em torno do conteúdo dessa letra. Há algumas contradições e conceitos que merecem um debate.
Todos se entreolharam. Os tamborins deram um tempo enquanto o pessoal renovava a cerveja.
- Primeiro: o ribeirão não fornece mais água pura, uma vez que as mineradoras estão poluindo tudo. Depois, a cachaça não vem do alambique artesanal de outrora. Todos sabem que as multinacionais dominam o mercado de destilados e a produção massiva é dirigida aos segmentos de baixa renda... Ao cantar “pode me faltar tudo na vida”, vocês tão fazendo uma crítica leviana à atual conjuntura nacional. A alta de preços do arroz, do feijão, do pãozinho e da manteiga é um problema sazonal que vem sendo enfrentado com muita coragem pelo Governo. O agronegócio tem um lobby poderoso no Congresso e usa suas armas, tentando solapar as política públicas que nossa Presidenta tenta implantar...
Engoliu o resto da cerveja, limpou a barba e finalizou:
- E esse lance de “só não quero que me falte a danada da cachaça” é uma tremenda alienação! Estamos fazendo o jogo dos coronéis do nordeste, famílias tradicionais que detêm os latifúndios e as usinas... Não nos podem faltar é liberdade, catraca livre, gratuidade no ensino e uma série de reivindicações que já listamos. Assim, já que está todo mundo aqui, proponho uma assembleia; vamos nos concentrar na praça, tirar uma palavra de ordem, subir a avenida em passeata e manifestar na frente ao...
*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâne
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