sábado, 6 de fevereiro de 2016

Da liberação à libertação

Gilmar P. da Silva SJ*
A inversão é uma das coisas que marcam o período do Carnaval. Como celebração do caos original – uma ruptura com a ordem e estabilidade que se tenta firmar no cotidiano por meio de rotinas e compromissos sociais –, abre-se uma licença para o que não é ordinário e para o lúdico. Uma série de inversões em relação ao cotidiano é permitida só “de brincadeira”.
Dentre as inversões “permitidas” está a mudança na caracterização do gênero. Homens se vestem de mulher e mulheres de homem – seja lá o que isso pode querer dizer, já que a sensibilidade atual já entende que essa história de roupa de homem e roupa de mulher é mera convenção. Veem-se, de fato, poucas mulheres vestidas com o guarda-roupa dito masculino. Contudo, o número maior é o de homens que se travestem de mulher. No Carnaval, estarão eles de peruca, vestido, saltinhos, maquiagens... mas de modo paródico.
Parece-me que isso tem algo de liberador. O feminino, que se tenta reprimir e que também faz parte do homem, pode ser expresso nessa época. O machão pode brincar de ser mulher e descansar do papel social que ocupa. Talvez tenham poucas mulheres vestidas de homem porque ao longo do ano elas já lidem com mais naturalidade com aquilo que há em ambos os sexos e se diz masculino. Aqui se diz de feminino e masculino como uma série de valores e compromissos que se arquetiparam nas figuras da mulher e do homem, respectivamente, mas que os têm apenas como baluartes, uma vez que não são exclusividade de um e outro.
A licença que se abre no Carnaval ao feminino revela que, ao longo do ano, este não tem lugar. O que implica em dizer que, sendo as mulheres as portadoras do estandarte da feminilidade, ordinariamente, elas não têm lugar. Apesar de todas as suas conquistas, ainda sofrem com coisas bem objetivas, como diferença salarial, e com outras que lhes atingem na subjetividade, como os interditos morais. Esse é o momento em que eu, como homem cisgênero, devo me calar e sugerir que o leitor, que for da mesma orientação, escute da mulher mais perto os sofrimentos que lhe advém pelo simples fato de ter nascido com o órgão feminino.
Para entender a causa feminina, não basta se vestir de mulher na brincadeira carnavalesca, há de se colocar no lugar no seu lugar pela empatia com suas dores. Nesse sentido, o filme As sufragistas (Suffragette) tem o poder de sensibilização com a causa da mulher. O longa de Sarah Gavron narra a história de Maud Watts (Carrie Mulligan), uma mulher comum, ocupada com seu trabalho e família e que, aos poucos, acaba integrando o movimento sufragista. O despertar da personagem central, que só queria resguardar o próprio lar, dá-se via sofrimento e por entender suas causas estruturais. Como não há representação feminina no Parlamento, as mulheres reivindicam o sufrágio universal, o direito ao voto, e desse modo conquistar a igualdade de direitos. Não ouvidas, as sufragistas partem para a desobediência civil e são constantemente reprimidas.
O filme faz um equilíbrio entre a historiografia e drama. Foge do discurso panfletário que é comum em obras que prezam por engajamento social e do exagero que lhes é comum. Ao contrário, As Sufragistas é extremamente sóbrio, tanto em sua fotografia como enredo. Justamente a vida de Maud, que poderia ser um desvio ao propósito do filme, é o que gera identificação do espectador e o leva, com ela, para dentro do movimento. Mesmo os mais avessos ao drama feminino acabam se sentindo implicados nos sofrimentos ali expostos. É um filme urgente para tempos como os que vivemos hoje. Urgem liberação e libertação do feminino.

*Mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com pesquisa em Signo e Significação nas Mídias, Cultura e Ambientes Midiáticos. Graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Possui Graduação em Filosofia (Bacharelado e Licenciatura) pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Experiência na área de Filosofia, com ênfase na filosofia kierkegaardiana. 

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