segunda-feira, 7 de março de 2016

A saída de quem nunca entrou

O plebiscito para a saída ou permanência da Grã-Bretanha na UE será no próximo dia 23 de junho.
Cameron tenta convencer Juncker sobre reformas ma UE.
O plebiscito para a saída ou permanência da Grã-Bretanha na União Europeia – o Brexit - está anunciado para o próximo dia 23 de Junho. As consequências da saída da Inglaterra seriam muito diferentes do Grexit – a anunciada e agora adormecida saída da Grécia.
Numa vertente, a saída de qualquer país, grande ou pequeno, seria fatal para a UE, é o que todos os observadores afirmam. E com alguma razão. Aplica-se aqui a conhecida teoria do dominó, ou do castelo de cartas; caindo uma peça, caem todas. Nem sequer os documentos fundadores da UE admitem essa hipótese, tão remota ela parecia até há bem poucos anos. Pelo contrário, o que se verificava era a candidatura de vários países, como a Albânia e a Turquia, o primeiro ansioso por aceder aos benefícios do mercado único e aos subsídios dos chamados “fundos de coesão”, as transferências dos países mais ricos para os mais pobres, o segundo, no seguimento da ambição turca de ser um país europeu (que já vem do princípio do século XX).
Mas, noutra vertente, há uma diferença fundamental entre o Brexit e o Grexit: a Grécia é um país mais pobre da UE, produzindo apenas 1,3% do PNB europeu (GDP, em inglês) e que ainda por cima sofreu uma redução de PNB de 18% desde 2005, contra o crescimento de 7% da média europeia. Altamente devedora e eterna consumidora dos fundos de coesão, em termos puramente económicos seria até um alívio para o conjunto dos países. O que a tem mantido, com vontade expressa de todos os países, são razões históricas (está na origem do DNA cultural europeu), morais (foi onde nasceu a democracia) e psicológicas (a tal teoria do dominó).
Já a Grã-Bretanha é o caso oposto: contribui com 15,9% do PNB europeu – em segundo lugar, a seguir aos 20,9% alemães e pouco acima dos 15,1% franceses – é a maior praça financeira mundial e tem uma economia que, apesar dos sobressaltos, tem crescido 3% ao ano.
Mas porque quer a Grã-Bretanha sair? Politicamente, o país sempre viu com maus olhos qualquer mínima perda de soberania, e os ingleses nunca quiseram ver transferido para Bruxelas o seu poder de decidir sobre o que quer que seja, de impostos a política externa. Sempre consideraram as suas instituições, do parlamento à libra, superiores às do “continente”. Se entraram, foi para não ficar de fora, ou seja, para poderem ter voz nas decisões europeias. E, também, para beneficiarem economicamente, tanto com as exportações de bens e serviços, como com a importação de mão de obra que lhes falta endemicamente.
Mas, na realidade, nunca entraram. Não participaram na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, o acto seminal de 1951. Só em 1972 é que aderiram à então Comunidade Europeia, já com um regime de excepção; não aderiram a Schengen (o tratado de livre circulação) em 1985, e muito menos quiseram participar da moeda única, em 1995.
No entanto a integração, mesmo que parcial, trouxe-lhes vantagens imensas, sobretudo no tocante à balança comercial. Actualmente, mais de metade das exportações britânicas vão para a Europa, para além do mercado de serviços e das transferências financeiras. A City continua a ser a maior bolsa de valores do espaço europeu, beneficiando com investimentos avultados vindos dos outros países.
Dentro dos partidos britânicos, a divisão sempre foi clara: conservadores contra a Europa, trabalhistas e liberais a favor. A crise pela qual a Europa está a passar deu mais argumentos aos conservadores, e por isso não surpreendeu que Cameron tenha avançado com este referendo, propondo desde já a saída. Mas os interesses financeiros e industriais, tradicionalmente conservadores, não estão assim tão certos; temem a perda do acesso automático ao mercado único europeu, a dificuldade na captação de crédito e o deslocamento do Reino Unido em definitivo para a órbita de influência dos Estados Unidos.
Com a justificação de uma saída, Cameron foi a Bruxelas e obteve junto do luxemburguês Jean-Claude Juncker, actual Presidente da Comissão Europeia, um estatuto de excepção ainda maior do que a Grã-Bretanha já tinha; permissão para limitar benefícios a imigrantes recém-chegados, garantia de que seu sistema financeiro não será discriminado em razão do país estar fora da zona do euro e de que sua soberania será preservada das políticas de integração do continente.
Cameron voltou para Londres triunfante, com um discurso sobre os interesses britânicos versus interesses europeus que, por si só, deveria ser razão para expulsar a Grã-Bretanha da UE – expulsão impensável, evidentemente, pois o que Bruxelas quer é que os ingleses fiquem, tanto que dobrou a espinha muito mais do que os países integrantes queriam. Não faltam queixas de Roma, Madrid ou Lisboa sobre o modo como a UE tem vindo a ceder a exigências impossíveis. De que serve a União, se o tratamento entre países é desigual? Não foi precisamente para acabar com essa desigualdade que ela se formou?
Mais chocante ainda, a diferença de tratamento entre a Grã-Bretanha e a Grécia. Mas a Itália, a Espanha ou Portugal nada valem no contexto de “cada um por si” que se instalou na Europa.
As dúvidas agora estão no resultado do referendo. As sondagens têm dado sistematicamente uma igualdade técnica: 49, 50, 51% a favor da permanência. O número de indecisos é alto, e é sobre esses que incidem as campanhas pró e contra. As jogadas têm sido vergonhosas para o nível de democracia que se atribui ao país. Por exemplo, Cameron determinou que os ministros do seu Gabinete que são contra a saída deixam de ter acesso a documentação pertinente. O prefeito de Londres, uma figura mediática que lembra muito Donald Trump, é a favor da saída. Como é Nigel Farage, o carismático líder do UKIP, um partido que, apesar de ter apenas um membro no Parlamento, obteve quase quatro milhões de votos nas últimas eleições.
Então, apesar de nunca ter entrado de alma e coração no casamento e ter um “relacionamento aberto”, a Grã-Bretanha quer o divórcio. Na Europa, há quem diga que talvez seja melhor assim e há quem veja o fim da UE. Se ocorrer, será certamente o princípio do fim. Os países europeus não vão tolerar por muito tempo um continente dirigido por Berlim através de meia dúzia de títeres em Bruxelas. A Islândia desistiu da candidatura, a Turquia já não fala muito nisso.
Em última análise, o destino da União vai estar na mão dos eleitores ingleses.
*O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.

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