segunda-feira, 21 de março de 2016

Em Paris, gente feliz

"Foi em Paris que me senti mais brasileiro, na manifestação dos aqui residentes contra o golpe".
Por Ricardo Soares*
De "chinfra" deixei no Facebook a indicação de que eu "morava" em Paris no curto período em que aqui permaneci e que agora, infelizmente, se encerra.  E por que fiz isso? Porque o verbo "morar" dá uma sensação de pertencimento, a doce ilusão de que estamos absorvendo hábitos, costumes e maneirismos dos locais, o que é uma imensa ilusão estando você três meses em Paris, como eu, ou 12, 17, 20 anos.
O coroamento dessas sensações de "pertencimento", no entanto, se deu de outra maneira. Foi em Paris que me senti mais brasileiro, como há muito não me sentia, na manifestação dos aqui residentes pela democracia e contra o golpe. Era para ser em frente ao consulado geral do Brasil, mas a polícia, sem truculência, não deixou alegando que tínhamos que pedir com três dias de antecedência a permissão para aquele tipo de manifestação. Assim, todos os brasileiros presentes (pouco mais de uma centena) se dirigiram para uma praça ali perto e fizeram sua ordeiríssima e amorosa manifestação, bradando apenas e tão somente contra o golpe, contra os atentados à nossa (como vemos) ainda frágil democracia. O que mais legitimou a autenticidade daquilo que eu vi foi a ausência completa de partidos ou qualquer ânimo exacerbado contra ou a favor do governo. No microcosmo parisiense vi e participei de uma pequena manifestação que adoraria que fosse um modelo para os brasileiros. Gente junta sem pedir crachá de ideologia por um bem comum: a manutenção da legalidade, o cumprimento irrestrito das leis para todos.
A obtusidade vigente em alguns muitos cantos do Brasil riu dessa pequena reunião de brasileiros não pelo número dos aqui reunidos, mas por ter sido em Paris. Argumentos do tipo "protestar em Paris é fácil" ou perguntas irônicas tais quais "Chico Buarque estava aí" ou  "distribuíram caviar e champanhe para todos?" vieram de vários cantos. Como se protestar em Paris fosse ilegítimo, indigno ou como se todos aqui morassem no mesmo condomínio chique onde teria um apartamento um ex-presidente da República. Contra tais argumentos só resta o riso.
Desde o ano passado não piso no Brasil. O tal ano novo brasileiro para mim começa no fim de março, quando regresso. Parece pouco tempo de ausência para dizer que muito mudou. Mas mudou. A primeira impressão é que mudou para muito pior. Mas agora, depois dessa manifestação alegre em Paris (sim, fomos chamados de "esquerda festiva"), exemplarmente ordeira, pacífica, harmoniosa e respeitosa, tenho muitas dúvidas. Vieram aqui manifestar brasileiros de passagem ou residentes. Mas brasileiros. Se somos capazes do que eu vi aqui, pertinho do consulado no dia 18 de março, poderemos ser capazes do mesmo em grandes aglomerados no Brasil. Vou sentir saudades dos cheiros, das pessoas e do acolhimento que tive aqui não só na manifestação, como em toda Paris de brasileiros muito queridos. E volto para acolher, ser colhido e acolhido por nossa capacidade de reinvenção, nosso gene de pacifismo e alegria que não combina com a horda de insensatos que tenta manchar a nossa real identidade nacional. Que mais do que o positivismo tolo e anacrônico de "ordem  e progresso" é feita de "paz e amor".
*Ricardo Soares é escritor, diretor de TV, jornalista, autor de sete livros, ex-diretor de redação de várias revistas, ex-cronista de vários jornais e encerra essa semana sua permanência de três meses em Paris.

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