segunda-feira, 21 de março de 2016

Fernando no manicômio

Por nunca ter sabido quem era, Fernando Pessoa nos ajuda a saber melhor quem somos.
Por Marco Lacerda*
Ao longo de sua vasta história, Portugal presenteou o mundo com uma coleção de gênios da literatura: Luís de Camões, Padre Antônio Vieira, Almeida Garret, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, José Saramago, Florbela Espanca, Lobo Antunes – para citar apenas alguns integrantes desse glorioso olimpo. Dentre eles atrevo-me a dizer que Fernando Pessoa é o maior de todos, quando nada pela desaforada universalidade com que sua obra atravessa o tempo.
Uma noite, ao passar diante de um espelho, Fernando percebeu nele uma outra pessoa a olhar para ele e deu-lhe o nome de Ricardo Reis e a partir daquele momento este passou a ser um dos seus nomes. Em seguida, surgiu a imagem de outro homem e, sem fazer comentários, Fernando nomeou-o Alberto Caeiro. A terceira figura não demorou muito e o poeta batizou-a de Álvaro de Campos. Outros homens desfilaram dentro do espelho naquela noite, todos poetas autônomos, extensões de Fernando, com vidas, estilos e personalidades independentes. São os autores da obra literária do gênio português.
Com seu sobretudo claro, gravata borboleta e chapéu, Fernando Pessoa era um flâneur na Baixa de Lisboa por onde caminhava todas as manhãs antes de sentar-se na concorrida Brasileira, a cafeteria inaugurada em 1905, junto ao Largo do Chiado, para degustar infusões preparadas com o genuíno produto do Brasil e rabiscar poemas em meio a tertúlias artísticas e literárias.
A assiduidade com que Fernando Pessoa frequentava a Brasileira motivou a inauguração, nos anos 80, de uma estátua em bronze de autoria do escultor Lagoa Henriques, que representa o escritor sentado a uma mesa na esplanada do café.
Graças à fama internacional do poeta, a Brasileira tornou-se uma das principais atrações turísticas de Lisboa, Babel de todas as línguas, arena onde se apresentam performáticos do mundo inteiro, garotas que engolem e cospem fogo, mulheres barbadas, homens-foguete que entram em órbita a qualquer hora, falsos traficantes que vendem orégano por maconha e farinha de trigo por cocaína.
E música, muita música. Lado a lado, uma banda de reggae, um grupo de pagode e uma gaita de fole escocesa exibem simultaneamente seus dons num volume muitos decibéis acima da tolerância do ouvido humano, o dia inteiro, sem trégua. Enfim, um manicômio a céu aberto.
Todos os comércios do Largo do Chiado ganham fortunas diariamente graças a Fernando Pessoa. Cafés, bares e restaurantes lotados. Vetustas turistas búlgaras fazem selfies beijando a face do poeta e garotas australianas deixam-se fotografar no colo da estátua em poses de calendário de borracharia, embora sejam incapazes de citar um verso sequer do escritor que um dia escreveu: “Não sou nada. Nunca serei nada, não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Pena que não haja um espelho diante da estátua na frente da Brasileira, para que Fernando pudesse olhar-se constantemente e saber qual dos Fernandos está lá. Para José Saramago, Fernando Pessoa nunca chegou a ter certeza de quem realmente era e graças a essa dúvida nos ajuda a saber um pouco melhor quem somos.
‘Oração’: Fernando Pessoa por Maria Bethania.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Dom Total.

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