segunda-feira, 14 de março de 2016

Novo presidente, outro estilo

Marcelo entrou em grande estilo e, além das cerimônias oficiais, fez um discurso pacificador.
Por José Couto Nogueira*
Na passada quarta-feira, dia 9, o professor universitário de Direito e comentarista político Marcelo Rebelo de Sousa tomou posse como 20º presidente da República, na sequência de eleições de 24 de janeiro em que obteve logo à primeira volta a maioria absoluta de 52%. (O segundo candidato, apoiado oficiosamente pelo Partido Socialista, não chegou aos 23%.)
Em termos de espectro político, não houve mudança no Palácio de Belém, a residência oficial, uma vez que tanto Marcelo (como toda a gente lhe chama, amistosamente) e Cavaco Silva, o presidente cessante, são ambos oriundos do PSD, que há décadas anda entre a direita e o centro-direita.
Mas termina aqui, onde mal começa, a consanguinidade entre os dois. Não podia haver personalidades mais afastadas nem histórias mais diferentes.
Cavaco vem da pequena burguesia – o pai era dono de um posto de gasolina no Algarve – e fez caminho a pulso, auto-classificando-se como anti-político, homem simples e honesto, apegado à família e sempre acompanhado por uma esposa suburbana ao ponto do ridículo. Contabilista, conseguiu formar-se em Finanças e em 1974, a quando da Revolução, estava a fazer o mestrado em York, Grã-Bretanha. Depois de uma rápida carreira política, aparece em 1985 como Primeiro Ministro, pelo PSD, onde dura uma década; e em 2006 é eleito presidente da República por outra década.
Sempre crispado, pouco à vontade e mesmo antipático, sua popularidade caiu em flecha nos últimos anos da Presidência, quando os portugueses começaram a duvidar seriamente das qualidades de que se autoproclamava e enquanto manteve até ao limite do possível a coligação PSD/CDS que governou entre 2011 e 2015. Vendo à distância, no seu governo, entre 1985 e 95, foram tomadas decisões catastróficas, mascaradas pelos bilhões de euros que vinham da Europa, desperdiçados em obras de novo-riquismo e perdidos na corrupção dos seus próximos, que constituíram pós-governo uma suposta associação de malfeitores e estão todos a contas com a justiça. Nunca houve provas concretas de que Cavaco estaria envolvido, mas perdeu a sua áurea de impoluto. Como presidente, incompatibilizou-se com todos os setores da sociedade e tinha tendência para fazer afirmações que só pioravam sua imagem. Agora, ao sair, os portugueses mal podem acreditar que esta figura dissimulada e desastrada dirigiu os destinos do país durante 20 anos, metade da idade da atual República.
Marcelo Rebelo de Sousa vem da alta burguesia que dominou a política e a economia durante o Estado Novo – seu pai, salazarista convicto, foi ministro várias vezes, inclusive na importante pasta do Ultramar, que mantinha as colônias portuguesas com mão pesada. Marcelo inclusive tem o nome do padrinho, Marcelo Caetano. Dez anos mais novo do que Cavaco, nunca seguiu as ideias do pai, embora tenha beneficiado na juventude de todas as vantagens de filho do regime, e manteve-se amigo das extirpes que atravessaram sempre por cima os dois regimes, como a família Espírito Santo. Divorciado, professor consagrado de Direito Administrativo, começou a carreira como jornalista do Expresso, na linha daqueles que pretendiam mudar o Estado Novo por dentro, e até foi secretário-geral do PSD. Mas a sua carreira política foi breve e mal sucedida, passando, a partir de 2000, a fazer um programa de comentários generalistas na televisão, onde falava enciclopedicamente de tudo – política, futebol, literatura, desporto, humanidades e senso comum. Esse programa rendeu-lhe tal popularidade que nesta campanha presidencial nem precisou gastar dinheiro em propaganda; limitou-se a andar de cidade em cidade e aproveitar o noticiário televisivo.
A seu favor jogou uma enorme simpatia e à vontade com todos os tipos e classe de pessoas. Sempre cordato e sorridente, não esconde que é católico e monárquico (uma originalidade que só afeta menos de 0,05% dos portugueses), mas sempre deixou claro que essas posições de princípio não teriam reflexo nas suas decisões – é, para efeitos práticos, muito mais democrático e muito mais convincente na sua democraticidade que o presidente cessante.
Nas últimas semanas, Cavaco Silva carregou na antipatia geral da nação distribuindo condecorações a figuras de perfil suspeito – como um secretário de Estado que censurou o único português Nobel da Literatura, José Saramago – ou mesmo ridículo – como o costureiro da esposa. Era palpável a urgência que a opinião pública tinha em ver-se livre dele.
Marcelo entrou em grande estilo, com um primeiro dia de Presidência em que, além das indispensáveis cerimônias oficiais (com a presença, entre chefes de Estado estrangeiros, de Fernando Henrique Cardoso), fez um discurso cordato e pacificador, participou numa cerimônia ecumênica com cristãos, muçulmanos e judeus, e assistiu na rua a um espetáculo de música popular. Na sexta-feira esteve no Porto, onde levou um banho da multidão em êxtase, num bairro de mau cariz, e correspondeu cumprimentando todos ao seu alcance e pousando para todos os selfies.
A esquerda está de cabelos em pé, incomodada por ter outro presidente “de direita”, embora o governo seja de esquerda. Debalde lembra o pai de Marcelo, os amigos de Marcelo, o seu passado centrista – que para a esquerda significa direitista. A popularidade do novo presidente é inquestionável, assim como a sua simpatia, quase humildade (uma palavra que mal se lhe aplica, diga-se) e a vontade de fazer uma presidência consensual e eficiente. Tem escolhido assessores de alto calibre e já marcou a celebração do próximo dia de Portugal (10 de junho) para Paris, em homenagem ao milhão de portugueses que vivem em França.
Claro que tudo isto é muito bonito, mas ainda não se viu como agirá Marcelo sob fogo. Ou seja, quando vierem bater à porta os problemas do país, especialmente a imensa dívida ao estrangeiro, a situação europeia em constante degradação e as peripécias do governo do PS apoiado periclitantemente no parlamento pelos dois partidos comunistas. Mas, para já, trouxe aos portugueses a esperança de que terão um representante genuinamente preocupado com eles e não em defender teorias político-econômicas impostas do exterior.
No fundo, e segundo a Constituição, esse é o principal papel que cabe ao presidente, num regime em que quem governa é o governo: ser um pai atento e interessado. Esse papel, Marcelo Rebelo de Sousa saberá desempenhar muito bem. 
*O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.

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