Quando muitos danos se tornaram irreparáveis nos demos conta de tudo que provocamos.
Devemos insistir na vocação humana para a relação de vida com o mundo criado.
Por Felipe Magalhães Francisco*
Os primeiros onze capítulos do livro do Gênesis marcam o projeto de Deus para o mundo criado: uma relação de comunhão e de vida. Um Deus que cria na liberdade e para a liberdade, propõe-se como oferta de amor e amizade a toda criação. Marcam, ainda, as ambiguidades e os descaminhos assumidos pela humanidade, frente a essa proposta de comunhão. Desconhecendo a si mesma, a humanidade rompe com essa proposta, buscando a autossuficiência. Fruto amargo dessa escolha, o padecimento de toda a criação, ante o descuido humano.
A narrativa do Gênesis nos alcança a todos, ainda hoje, por tocar em pontos fundamentais para nossa compreensão do lugar que ocupamos no mundo e da relação com as outras criaturas. A vida como um todo se vê ameaçada – e muitas já extintas – graças a um árduo trabalho humano de apropriação indevida da força da natureza, de seus recursos e de sua vitalidade. Mudamos o mundo – positiva e negativamente – sem mudar a nós mesmos, não indo de encontro com aquilo que significa a verdadeira realização de nossa humanidade criada.
O planeta padece as sequelas de um constante processo de adoecimento provocado em nome do progresso e da satisfação dos humanos. Apenas quando muitos danos se tornaram irreparáveis é que passamos a nos dar conta de tudo o que provocamos. Ainda assim, o capitalismo continua desenfreado e apenas um planeta já não é mais suficiente para esconder tanto lixo. Na ilusão de um processo de mudança, apostamos em ideias que apenas reforçam o mal que violenta a vida. Basta que pensemos no que se passou a chamar de “capitalismo verde”.
Há várias décadas o Nordeste brasileiro sofre com as secas, que poderiam ter sido amenizadas se os poderes públicos estivessem interessados. Mas apenas em 2015 o problema da falta de água se tornou uma questão, quando o Sudeste se viu desabastecido, tanto pela falta de chuvas, quanto por um sistema hídrico já falido. E, enquanto a população era responsabilizada e penalizada pela falta de água, os mineriodutos seguiam e seguem em funcionamento. Insistem na ideia da mudança de consciência da população no uso da água, mas ignoram o desperdício de fato, provocado pela avidez do lucro desmedido e irresponsável.
Minas Gerais, dilapidada desde o período colonial, continua sendo fonte de enriquecimento de poucos, que lucram com as riquezas naturais, e só deixam devastação, quando esgotam os recursos por onde passam. Ainda é bastante vivo na memória, ainda que a grande mídia já ignore por conveniência, o atentado ambiental ocorrido em Mariana, em novembro passado. Quase seis meses depois e ninguém foi responsabilizado formalmente, mas a lama da indecência ainda escorre, trazendo morte e destruição incalculáveis.
Mas há que se ter esperança. Esperança operosa, de movimento que transforma e denuncia. E é justamente por isso que devemos insistir na vocação humana para a relação de vida com o mundo criado. Para isso, precisamos transformar nossas próprias relações humanas, transformadas em exploração dos pobres como força de trabalho a dar lucros aos donos do capital. Na ocasião do Dia da Luta dos Trabalhadores da Terra, ocorrido no domingo, 17, somos recordados de que precisamos unir nossa voz a voz dos muitos trabalhadores do campo, ainda marginalizados diante da realidade do agronegócio, a fim de que o direito à terra seja garantido como verdadeira páscoa de transformação, trazendo justiça social. Na perspectiva da espera pela páscoa, tanto da terra quanto dos pobres, propomos o primeiro artigo, de nossa autoria: A Páscoa da terra e dos pobres.
Refletindo a importância do respeito às culturas indígenas, tema que ganha destaque com a celebração do Dia do Índio (19), trazemos uma entrevista, feita com o coordenador do Conselho Missionário Indigenista (Cimi), do Regional Leste, o historiador Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira. A luta pela garantia dos direitos indigenistas é tema importante, que precisa de nossa atenção. Ao mesmo tempo, olhar para as culturas indígenas pode nos dar pistas importantes para transformarmos nossa própria relação com a natureza, na perspectiva do respeito à criação que nos irmana.
O terceiro artigo que propomos reflete a importância do aprofundamento do diálogo entre a fé cristã as Ciências da natureza, a partir da mística franciscana. No artigo, o Frei Sinivaldo Tavares, OFM, doutor em teologia pela Pontificia Università Antonianum, em Roma, oferece um olhar a respeito da relação entre teologia e Ciências da natureza, apontando pistas importantes para esse diálogo fundamental para hoje. Que a celebração do Dia do Planeta Terra, no dia de hoje, sirva-nos de inspiração para o crescimento no cuidado para com esta Casa que nos acolhe.
*Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Coordena, ainda, a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015).
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