O diálogo entre fé e ciência tem se convertido para repensar a especificidade de cada uma.
O cuidado com as criaturas é uma das marcas do pensamento e da espiritualidade franciscana.
Por Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM*
O enternecimento de Francisco de Assis para com cada criatura e seu cuidado para com o conjunto da Criação impactam quantos se sensibilizam face ao atual descaso do planeta, nossa casa comum. O Poverello foi recentemente lembrado pelo papa Francisco na Laudato Si’: “Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior” (n. 10).
Esta singular atitude constitui um dos moventes da rica tradição franciscana que se foi constituindo ao longo dos séculos. A presença evangelizadora dos frades foi se estabelecendo, no curso do tempo, mediante uma sadia pluralidade: cuidado dos pobres e excluídos, pregação itinerante, grandes pregações populares, ensino das ciências, da filosofia e da teologia nas grandes universidades medievais. Em meio a tamanha diversidade, o cuidado para com as criaturas tem se apresentado como uma das marcas características do pensamento e da espiritualidade franciscanos.
Nos primórdios do movimento franciscano, encontramos Santo Antonio que elabora seus Sermões com uma linguagem repleta de alegorias e símbolos extraídos dos famosos “bestiários” e “herbários” medievais, fontes preciosas de sua elaboração teológica. Na origem das universidades de Oxford e de Cambridge, encontramos franciscanos, filósofos e teólogos, que se destacam na pesquisa das ciências naturais. Roberto Grossateste e Roger Bacon, entre outros, produzem tratados de astrologia, matemática, geometria, ótica e física. Da mesma forma, na universidade de Paris, Boaventura, e, na península Ibérica, Raimundo Lullo, para citar outros dois nomes, aprofundam a via do assim chamado “Livro da natureza” (Líber naturae) como uma das fontes da sagrada teologia. Como se vê, os pensadores franciscanos não contrapõem ciências naturais e sagrada teologia, sequer as separam. Ao contrário, distinguindo-as, elegem o estudo das ciências naturais como mediação privilegiada para se compreender melhor os desígnios do Criador esparsos em meio à complexidade da criação.
Como prosseguir, hoje, os sulcos abertos por esta rica tradição franciscana? Somos herdeiros de um passado caracterizado por uma espécie de “repartição dos bens” entre ciências naturais e fé. Ambas descobriram ser possível viver pacificamente desde que fossem respeitadas as especificidades de cada uma. Todavia, esta rígida divisão acabou se revelando prejudicial tanto à ciência quanto à fé. A ciência acabou transformando seu objeto em uma natureza morta, porque, sem alma. E a fé fez de seu objeto a existência e a história humanas desencarnadas, destituídas de concretude e de vitalidade. A primeira desenvolveu uma metodologia empírica e formal, enquanto a segunda, empregou métodos puramente interpretativos e abstratos. Em suma, ambas empobreceram suas análises, sobretudo em virtude de seus métodos assépticos e dicotômicos.
Sem querer negar os avanços alcançados no passado recente, através das “viradas” antropológica e histórica, a teologia, hoje, é interpelada a superar de vez todo ranço de antropocentrismo e de historicismo presentes em seu seio. Por isso mesmo, além do diálogo com as ciências humanas, sociais e históricas, a teologia é chamada a inaugurar “uma nova aliança” com as ciências ditas naturais como, por exemplo, a biologia, a bioquímica, a bio-física, a cosmologia, a geologia, a astro-física e a física quântica. O que vai requerer da teologia o ingente esforço de se inserir no bojo desse diálogo, inaugurando um método que seja inter e transdisciplinar.
Acreditamos, enfim, que o diálogo entre fé e ciência tem se convertido no momento oportuno para se repensar a especificidade de cada uma delas. Na qualidade de ciência da fé, a teologia, portanto, é chamada a despertar neste ambiente fragmentado de nossos saberes a saudade de um saber e de uma pesquisa mais afins à complexidade do real. Não se trata, minimamente, de assumir a pretensão de agarrar com os próprios tentáculos a totalidade do real, mas, ao contrário, de lidar com os limites de todo conhecimento, pensando-os na sua profundidade última. Para a teologia, de modo especial, esta parece ser a grande ocasião para que ela recupere sua orientação mais própria que é a de se conceber como um balbuciar reverente face ao inefável e inominável do Mistério de Deus e de suas criaturas. É o momento propício para que a teologia se redescubra como uma “disciplina nos limites”.
Para as demais ciências, esta também pode se converter na grande chance para que elas recuperem a consciência da intrínseca dimensão mistérica da inteira realidade criada e da vida em suas mais distintas formas e expressões. E que, portanto, a realidade resulta mais do que um enigma incapaz de ser desvendado pela simples inadequação de nosso instrumental de análise. Na verdade, enquanto intrinsecamente mistérica, ela se furta à nossa imperiosa vontade de volúpia e domínio.
O mundo em que vivemos, portanto, em sua irredutível complexidade, talvez constitua uma ocasião propícia para se recuperar a perene atualidade dessa fecunda tradição franciscana.
*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM. Doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia sistemática na FAJE e no ISTA, Belo Horizonte. Entre suas recentes obras, publicadas pela Editora Vozes, estão: Evangelização em diálogo: novos cenários a partir do paradigma ecológico; Evangelização e Interculturalidade; Teologia da Criação: outro olhar novas relações; Trindade e Criação. Em 2016, organizou com A. Murad, o livro: Cuidar da casa comum: chaves de leitura teológicas e pastorais da Laudato Si, publicado por Edições Paulinas. Tem publicado ainda estudos em obras coletivas e artigos em revistas teológicas especializadas.
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