sexta-feira, 22 de abril de 2016

A Páscoa da terra e dos pobres

Voltemos o olhar para o descaso com o qual os poderes públicos lidam com a população.
A terra, direito de todos, torna-se privilégio de uns poucos, que abusam do poder assumido à força.
A terra, direito de todos, torna-se privilégio de uns poucos, que abusam do poder assumido à força.
Por Felipe Magalhães Francisco*
No calendário litúrgico celebramos, atualmente, a Páscoa do Senhor, que se prolonga na vida da comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus. O caminho de cinco semanas, percorridos na Quaresma, levou os cristãos e cristãs católicos a se prepararem para a celebração daquilo que é a razão e o sentido da fé cristã: a Morte e a Ressurreição de Jesus, o Cristo. A cada ano, a Igreja no Brasil propõe uma reflexão que acompanha o caminho penitencial e de conversão, a Campanha da Fraternidade. Este ano, de modo ecumênico, a Campanha da Fraternidade reflete sobre a nossa Casa comum, nossa responsabilidade.
A reflexão que se abre na Quaresma não pode encontrar seu findar no domingo de Páscoa. Muito pelo contrário, essa reflexão precisa se estender para o cotidiano de todos nós, homens e mulheres de boa vontade, atentos aos sinais de nosso tempo e às nossas responsabilidades diante do mundo. Se a Ressurreição de Jesus nos alcança e nos ilumina, precisamos mostrá-la ao mundo. Afinal, toda a criação espera pela libertação total e por sua realização em Deus: “Com efeito, sabemos que toda a criação, até o presente, está gemendo como que em dores de parto, e não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos em nosso íntimo, esperando a condição filial, a redenção de nosso corpo” (Rm 8,22-23).
A inspiração bíblica para a Campanha da Fraternidade desse ano é, ao mesmo tempo, uma denúncia e um grito de esperança: “Quero apenas ver o direito brotar como fonte, e correr a justiça qual riacho que não seca” (Am 5,24). Amós, um dos mais críticos profetas, ajuda-nos a perceber a vontade do Senhor de que a dignidade da vida seja uma realidade concreta na vida do povo. O recorte no amplo tema do respeito à Casa comum foi feito de modo que voltemos nosso olhar para o descaso com o qual os poderes públicos lidam com a população, sobretudo a mais pobre. É preciso romper com a cadeia de injustiça e de cerceamento de direitos, dos pobres todos.
Falando contra os líderes religiosos e políticos de seu tempo, o grito de Amós nos alcança hoje, num delicado momento de crise institucional pelo qual passamos. Quando, em um Estado, que tem por inspiração constitucional, ser laico, vemos crescer a chamada Bancada da Bíblia, no Congresso Nacional, composta por evangélicos e católicos igualmente fundamentalistas, a dura palavra do profeta tem um lugar ainda maior. Como seguidores e seguidoras de Jesus precisamos, pelo compromisso da fé, romper com estes que significam atraso, retrocesso e injustiça em nome de um deus egoloátrico e que nada se refere a Jesus, aquele que é Deus-com-os-pobres. A voz do profeta ressoa em meio aos escombros das instituições democráticas, que se desmancham na mão de corruptos que atentam contra o Estado de Direito e deixam os pobres à mercê do próprio infortúnio, causado pela injustiça dos poderosos.
Igualmente, a Bancada Ruralista significa a defesa de um uso da terra de modo injusto, opressor, invasivo e destrutivo. Além de privilegiar os que roubam a terra dos pobres, camponeses e índios, esses políticos compactuam com uma visão de progresso capitalista que dilapida a natureza e destrói a vida de toda a criação. O uso desmedido de venenos, em vias de garantir mais lucro, adoece a terra e os consumidores que não têm outra escolha senão utilizar destes produtos que consomem a vida e causam enfermidades. A terra, direito de todos, torna-se privilégio de uns poucos, que abusam do poder assumido à força. Ver o direito e a justiça é garantir às pequenas famílias o direito à terra, numa autêntica reforma agrária; é valorizar a agricultura familiar, verdadeira alternativa ao agronegócio; devolver às comunidades indígenas sua relação com a terra, garantia de verdadeira identidade.
A denúncia do profeta precisa nos alcançar, de modo que lutemos, por meio do diálogo e do exercício da cidadania, contra os ideais fascistas e desumanos da Bancada da Bala, responsável pela recorrente barbárie contra os jovens, sobretudo contra os negros de nossas periferias, que marcam com seu sangue o solo de nosso país, tal como Abel, brutalmente assassinado por seu irmão (cf. Gn 4,10). Nosso compromisso cidadão precisa, com real urgência, romper com o descaso e a indiferença dos políticos que compactuam com as mortes provocadas pela violência, também institucional, que ceifa muitas vidas em nosso país e que agride professores e jovens que buscam seus direitos.
Nossa Páscoa está incompleta se não toca, de maneira profunda e transformadora, a vida dos empobrecidos por nosso sistema injusto e opressor. Já nos alertara Jesus de que é mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha, que um rico entrar no Reino dos Céus (cf. Mt 19,24), pois, sem a salvação dos pobres, a salvação dos ricos se torna apenas dinheiro e poder, império que sempre rui. Nesta semana, em que comemoramos o Dia da Luta dos Trabalhadores da Terra (17), o Dia do Índio (19) e o Dia do Planeta Terra (20), somos chamados a não passar por esses dias sem uma postura autêntica de transformação das situações de morte, em vida para todos, pois toda a criação espera, com urgência, a manifestação da Vida. Repitamos, repitamos, até que chegue ao coração: Casa comum, nossa responsabilidade!, e façamos valer o direito e a justiça, verdadeira Páscoa dos pobres e da terra, que nos sustenta os pés e a vida. 
*Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Coordena, ainda, a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015).

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