segunda-feira, 25 de abril de 2016

"Feliz a nação cujo Deus é o Senhor"

Que nação, então, Deus escolheu por sua herança?
A poderosa “nação”, tão invocada pelos parlamentares, não se refere ao povo escolhido pelo Deus da Aliança.
A poderosa “nação”, tão invocada pelos parlamentares, não se refere ao povo escolhido pelo Deus da Aliança.
Por Felipe Magalhães Francisco*
O versículo que dá título a este texto é tirado do Salmo 33 (32). No fatídico domingo 17 esse versículo foi amplamente vociferado por deputados e deputadas da chamada Bancada da Bíblia, na Câmara Federal, entre as inúmeras referências a Deus e à “nação evangélica”. A mesma Constituição Federal que garante a liberdade religiosa e de culto, bem como o direito à não profissão de nenhuma fé (cf. Art. 5º, VI), assegura, também, a laicidade do Estado Democrático (cf. Art. 19º, I). Um artigo, portanto, torna-se condição de possibilidade para o outro. Na atual conjuntura, os deputados e deputadas da “nação do Senhor”, tanto os evangélicos quanto os católicos – todos fundamentalistas –, parecem ignorar o Art. 19º, em uma supervalorização desvirtuada do 5º.
Esqueceram-se, porém, os deputados e as deputadas, da segunda parte do versículo do referido Salmo: “[...] o povo que escolheu para si por sua herança”. Isto é: feliz é a nação cujo Deus é o Senhor; este povo é o povo escolhido por Deus. Ora, tal esquecimento – proposital ou não – revela algo estarrecedor: a falsa religião de tais deputados e deputadas, que impõe uma teocracia egolátrica, na qual os deuses são eles próprios e os fiéis não importam, a não ser para lhes darem o dízimo, os votos e inquestionada confiança. A poderosa “nação”, tão invocada pelos parlamentares, não se refere, sob hipótese alguma, ao povo escolhido pelo Deus da Aliança. Tampouco esses parlamentares, corruptos e mercenários em sua maioria – a quem basta um “Ai de vós!” (Mt 23,23) –, seriam os eleitos guardiães do povo de Deus.
Que nação, então, Deus escolheu por sua herança? As Sagradas Escrituras não se furtam à resposta: “O Senhor afeiçoou-se a vós e vos escolheu, não por serdes mais numerosos que os outros povos – na verdade sois o menor de todos – mas, sim, porque o Senhor vos amou e quis cumprir o juramento que fez a vossos pais” (Dt 7,7-8). O Deus bíblico tem predileção pelo fraco, pelo pobre, pelo desvalido. Isso se confirma em Jesus, no qual vemos a predileção que Deus tem pelos pequeninos. Os prediletos do Senhor são, justamente, os abandonados pelos parlamentares em sua maioria, mas, de forma mais vergonhosa, pelos parlamentares religiosos. Basta perceber o discurso de ódio proferido por tais religiosos, em nome da fé e da moral.
Tanto nossa Constituição quanto as Sagradas Escrituras rejeitam o comportamento desses parlamentares, porque injusto, opressor e cerceador dos direitos individuais dos cidadãos e cidadãs de nosso país. Já sabemos quais são as consequências de uma relação promíscua entre o poder público e as instituições religiosas. Aos cristãos, não negamos, cabe o exercício da Política, na promoção do bem comum, da justiça, da igualdade de direitos e na garantia da dignidade de todos, a começar pelos mais pobres, vítimas primeiras do descaso. “Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal perde o seu sabor, com que se salgará? Não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e pisado pelas pessoas. Vós sois a luz do mundo. Uma cidade construída sobre a montanha não fica escondida. Não se acende uma lâmpada para colocá-la debaixo de uma caixa, mas sim no candelabro, onde ela brilha para todos os que estão em casa. Assim também brilhe a vossa luz diante das pessoas, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,13-16).
O engajamento político dos cristãos e cristãs, para além da filiação partidária, corresponde à fidelidade à missão de todo discípulo e discípula de Jesus. Não como imposição doutrinal e institucional, mas na assunção de um comportamento ético que contribui na humanização das relações, na promoção de uma vida digna e justa para todos, na defesa das liberdades individuais e no respeito às diferenças. Significa dar de comer e de beber a quem tem fome e sede; vestir o que está nu; visitar e cuidar dos doentes e dos encarcerados (cf. Mt 25,35-36) e cuidar de nossa Casa comum, a Terra que nos sustenta e proporciona vida. Quando, enfim, não houver mais fome, abandono, descaso, injustiça e opressão, falso profetismo e indiferença, ódio contra minorias, machismo e sexismo, aí sim seremos uma nação feliz, porque verdadeiramente marcada pelo bem comum, fruto da justiça e do amor. 
*Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Coordena, ainda, a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). Escreve às segundas-feiras.

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