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Papa: "O meio-ambiente é um bem coletivo".
Só se pode falar em comunhão universal no respeito profundo à singularidade de cada criatura
Ao conceber a criação como um “livro estupendo” de Deus, na Laudato Si’, o papa insiste na “mensagem de cada criatura na harmonia de toda a criação” (nn. 84-88). De fato, a harmonia do conjunto da criação é fruto da conjugação das diferenças específicas, das singularidades envolvidas em tensão fecunda. O papa nos convida, afinal, a superar toda separação rígida entre dimensões recíprocas que compõem a complexidade da realidade criada. Assim, singularidade e pluralidade, identidade e diferença, são pares de termos distintos, mas não separados, e menos ainda contrapostos. São distintos para poderem se relacionar e se unir numa verdadeira comunhão. Só o que é diferente pode vir eventualmente a se unir, posto que só entre diferentes, pode haver comunhão.
Neste sentido, só se pode falar em “comunhão universal” (nn. 89-92) no respeito profundo à singularidade de cada criatura. Há uma recíproca implicação entre ambos os pólos e é por isso que o papa Francisco insiste em considerá-los nesse capítulo que trata do evangelho da criação. É nesse contexto que o papa insere o Cântico do Irmão Sol de são Francisco de Assis. Com razão, o texto foi lembrado uma vez que ele constitui excelente testemunho do que dizíamos acima acerca da relação de intrínseca reciprocidade entre a singularidade de cada criatura e pluralidade de todas elas no complexo harmonioso da inteira criação.
Se a terra é de Deus; se somos chamados a ser cultivadores/cuidadores dela por incumbência do Criador; se fomos feitos do barro da terra para podermos cultivar e cuidar bem dela (Adam-adamah), então nada mais coerente que considerar o destino comum dos bens como parte integrante do evangelho da criação. Precisamente aqui se encontra um dos fundamentos da preocupação do papa Francisco em articular sempre a questão da crise ambiental com a da injustiça social. Numa palavra, articular o grito da terra ao grito do pobre. Essa dobradinha nos advém da mais genuína tradição bíblica e cristã. Com singular contundência, afirma o papa Francisco: “O meio-ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para administrar em benefício de todos. Se não o fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existência aos outros” (n. 95).
Que o papa conclua sua reflexão acerca do evangelho da criação remetendo-nos ao “olhar de Jesus” (nn. 96-100) soa-nos como algo muito significativo. Ele chama a atenção para um gesto de Jesus, o olhar. É na pessoa de Jesus, concebida como complexidade de gestos e palavras, que a palavra de Deus atinge sua concreção e realização máximas. A referência ao “olhar de Jesus” conduz-nos à atitude contemplativa do mestre de Nazaré. Para ele o mundo e a história eram diáfanos, transparentes. O que equivale a dizer que ele via em tudo a presença gratuita e interpeladora do Pai. Jamais sucumbiu à sedução daquelas dicotomias típicas da religião de seu tempo, mas através de seus contínuos diálogos tentou demover as pessoas desse terreno pantanoso.
Jesus, mediante seus gestos e palavras, tentou conduzir seus interlocutores a perceber Deus na raiz e nos meandros intrincados da própria existência e a acolher seus desígnios e apelos misturados com a vida. Por essa razão, ele se revelou como sendo o Emanuel, Deus conosco, o Deus que se revela a partir de dentro da nossa existência e dos meandros sutis da vida em geral, numa atitude de inusitada inclusão e envolvimento com nosso destino. O papa lembra o fato de Jesus falar em parábolas e salienta a peculiar atitude de Jesus para com as criaturas expressa nessa opção. O falar em parábolas, segundo a tradição sinótica, revela dimensões inusitadas da pessoa de Jesus e de sua experiência de homem de fé e de pregador do Reino de Deus. Exprime, em primeiro lugar, sua familiaridade com as criaturas a ponto de enxergar em seu transfundo a presença íntima e amorosa do Criador e Pai. Exprime, ademais, sua familiaridade com o Pai e Criador a ponto de percebê-lo presente em meio às criaturas e de discernir seus desígnios e apelos em meio à complexidade da criação. Exprime, ainda, a sensibilidade do pregador de Nazaré em conduzir seus ouvintes a uma crescente familiaridade com o Criador e Pai e com as criaturas, Suas filhas e nossas irmãs. A pregação de Jesus consistia na insistência em levar as pessoas que o ouviam e conviviam com ele a assumir um novo olhar: um olhar contemplativo capaz de perceber a presença diáfana e transparente do Criador no transfundo de suas criaturas.
O papa Francisco rememora ainda uma das pérolas da tradição cristã, recuperada na Idade Média pelo franciscano Duns Scotus e, mais recentemente, reproposta pelo cientista e místico Teilhard de Chardin: a dimensão crística da inteira realidade criada. Nesse horizonte, a encarnação é concebida como o sentido último da criação, pois, estando ao testemunho dos textos do Segundo Testamento, Jesus Cristo é reconhecido como sendo, simultaneamente, o “primogênito de toda criatura” e o “recapitulador universal”. Portanto, desde os inícios de nossa fé, a relação das comunidades cristãs para com a criação esteve unida, intrinsecamente unida, ao Mistério de Cristo. “Segundo a compreensão cristã da realidade, o destino da criação inteira passa pelo mistério de Cristo, que nela está presente desde a origem: «Todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele» (Cl 1, 16). O prólogo do Evangelho de João (1, 1-18) mostra a atividade criadora de Cristo como Palavra divina (Logos). Mas o mesmo prólogo surpreende ao afirmar que esta Palavra «Se fez carne» (Jo 1, 14). Uma Pessoa da Santíssima Trindade inseriu-Se no universo criado, partilhando a própria sorte com ele até à cruz. Desde o início do mundo, mas de modo peculiar a partir da encarnação, o mistério de Cristo opera veladamente no conjunto da realidade natural, sem com isso afetar a sua autonomia” (n. 99).
O papa já havia nos remetido anteriormente à realidade do Cristo ressuscitado e glorioso, o Cristo cósmico e, por extensão, ao final bom e reconciliador da inteira realidade criada. Esta é a utopia cristã com respeito aos tempos derradeiros e definitivos. Fim dos tempos concebido não como destruição do mundo, mas como plenificação da vida. Trata-se, na verdade, de uma promessa feita a cada criatura e a todas elas indistintamente. A exclamação bíblica de que “Deus viu que tudo era bom!” continua ecoando, por entre os meandros sutis da inteira criação, como uma promessa feita a nós. E, como toda promessa, ela nos conclama à missão. De fato, promessa vem de pro+missio. E, por isso, ela propicia o emergir da missão concebida como incumbência: empenho pela radical transformação deste mundo para que se torne, lenta e irresistivelmente, bom, plenamente bom. Partícipes da vida do Cristo ressuscitado, nós e o conjunto das criaturas formamos o seu corpo, o corpo glorioso e cósmico de Cristo. Somos todos membros de um único corpo. É o caso, portanto, de falar de diferentes singularidades que concorrem à unidade do corpo e não de superioridade de uma ou de algumas criaturas em relação às outras. A diferença específica ou a singularidade do ser humano é a de cuidar da vida no planeta, uma vez que somos chamados a reconduzir, em Cristo, todas as criaturas ao seu Criador. “A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação universal. E assim juntamos mais um argumento para rejeitar todo e qualquer domínio despótico e irresponsável do ser humano sobre as outras criaturas. O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas avançam, juntamente conosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina. Com efeito, o ser humano, dotado de inteligência e amor e atraído pela plenitude de Cristo, é chamado a reconduzir todas as criaturas ao seu Criador” (n. 83).
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