Sobre a interpretação de Amoris Laetita n. 305
305 […] Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja.351Nota 351. Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, «aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor» [Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 44]. E de igual modo assinalo que a Eucaristia «não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos» [Ibid., 47].
Esse texto deve ser esclarecido. Como um sacerdote pode afirmar com certeza que uma pessoa que vive em situação objetiva de pecado está em graça de Deus? Que critérios ele teria para fazer esse juízo? Esperamos uma resposta do Magistério, lembrando-nos do que disse Santa Joana D’Arc, pouco antes de morrer. Ao ser perguntada se estava em graça de Deus, a santa respondeu: “Se não estou, que Deus me queira pôr nela; se estou, que Deus nela me conserve”.
Enquanto o desejado esclarecimento não chega, deve-se afirmar que o referido parágrafo de A. L. deve ser interpretado segundo a doutrina moral da Igreja, presente nos textos do Magistério precedente. Isso porque o Magistério da Igreja é “cumulativo” e não “anulatório”.Os ensinamentos do Magistério ordinário vão se somando com o passar dos anos, e não é possível que um texto cancele os anteriores. Fazê-lo significa negar, na prática, a infalibilidade do Magistério, seja dos textos antigos e “ultrapassados”, seja dos textos mais recentes e “inovadores”. Como as duas opções são erradas, os textos magisteriais devem ser lidos em harmonia com os precedentes. É isso o que distingue o Magistério das modas teológicas.
Certamente o Papa tem isso em mente, pois ele mesmo fez no capítulo III de A. L. (nn. 67-70) um recorrido pelos diversos documentos magisteriais precedentes (Gaudium et spes, Humanae vitae, Carta às famílias Gratissimam sane, Exortação apostólica Familiaris consortio, Deus caritas est, Caritas in veritate), indicando a continuidade de A. L. com aqueles textos.
Além disso, o Papa disse explicitamente que “na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis” (A. L. 3), mesmo reconhecendo que “isto não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela”. E depois do discutido parágrafo 305, Francisco reconhece que “entende os que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma” (A. L. 308). De fato, se o referido texto gerar nos pastores confusão e divisão, fica difícil compreender como eles podem ser agentes no processo de discernimento e integração desejado pelo Papa.
Uma das interpretações dadas atualmente a A. L. 305 pode ser expressa com a seguinte argumentação:
- Há circunstâncias atenuantes que podem diminuir ou anular a imputabilidade moral;
- Por isso, algumas pessoas podem viver simultaneamente em situação objetiva de pecado e em graça de Deus;
- No caso de a pessoa não ter consciência de viver em pecado (e viver “na graça”), por causa da “lei da graduação”, o padre, ao escutar a confissão dela, deve dar-lhe a absolvição e a Eucaristia, deixando-a na ignorância sobre a própria situação objetiva de pecado.
Essa argumentação implica o esclarecimento de diversos elementos da Teologia Moral. Vamos fazê-lo a partir do Magistério e depois responderemos ao dito argumento.
- A lei da graduação pastoral
O texto mais famoso sobre a lei da graduação pastoral, em assuntos referidos à família, éFamiliaris Consortio (de 1984), que diz no seu n. 34:
“Por isso a chamada «lei da graduação» ou caminho gradual não pode identificar-se com a «graduação da lei», como se houvesse vários graus e várias formas de preceito na lei divina para homens em situações diversas. Todos os cônjuges são chamados, segundo o plano de Deus, à santidade no matrimônio e esta alta vocação realiza-se na medida em que a pessoa humana está em grau de responder ao mandato divino com espírito sereno, confiando na graça divina e na vontade própria”[1].
Em 1997, o Conselho Pontifício para a Família publicou o Vademecum para os Confessores sobre alguns Temas de Moral Relacionados com a Vida Conjugal[2]. Nesse texto, o conceito fica ainda mais claro.
“9. A «lei da gradualidade» pastoral, que não se pode confundir com «a gradualidade da lei», que pretende diminuir as suas exigências, consiste em pedir uma ruptura decisiva com o pecado e um caminho progressivo para a união total com a vontade de Deus e com as suas amáveis exigências”.
- O papel dos confessores na formação da consciência dos fiéis
O mesmo Vademecum de 1997 diz:
“5. O confessor é chamado a admoestar os penitentes sobre as transgressões em si, graves, da lei de Deus e fazer com que desejem a absolvição e o perdão do Senhor com o propósito de repensar e corrigir a conduta. De qualquer modo, a recidiva nos pecados de contracepção não é em si mesma motivo para se negar a absolvição”.
Mais adiante, o texto afirma:
“8. O princípio, segundo o qual é preferível deixar os penitentes de boa fé no caso dum erro devido à ignorância subjetivamente invencível, é de reter sempre como válido, até com vista à castidade conjugal, quando se prevê que o penitente, apesar de orientado a viver no âmbito da vida de fé, não modificaria a conduta e que, pelo contrário, passaria a pecar formalmente; todavia, mesmo nestes casos, o confessor deve procurar aproximar-se cada vez mais desses penitentes pela oração, pela advertência e exortação à formação da consciência e pelo ensinamento da Igreja, no acolher na própria vida o plano de Deus mesmo nestas exigências.”
Entretanto, há outro texto da Congregação da Doutrina da Fé de 1994 que diz que não se pode deixar no erro quem faz a comunhão e convive com outra pessoa como marido e mulher. “O fiel que convive habitualmente more uxorio com uma pessoa que não é a legítima esposa ou o legítimo marido, não pode receber a comunhão eucarística. Caso aquele o considerasse possível, os pastores e os confessores – dada a gravidade da matéria e as exigências do bem espiritual da pessoa e do bem comum da Igreja – têm o grave dever de adverti-lo que tal juízo de consciência está em evidente contraste com a doutrina da Igreja”[3].
[1] S. JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Familiaris Consortio, Disponível em:http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_19811122_familiaris-consortio.html
[2] Disponível em:http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/family/documents/rc_pc_family_doc_12021997_vademecum_po.html
[3] CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Carta aos Bispos da Igreja Católica a Respeito da Recepção da Comunhão Eucarística por Fiéis Divorciados Novamente Casados. Disponível em:http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_14091994_rec-holy-comm-by-divorced_po.html - Zenit
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