terça-feira, 21 de junho de 2016

Complexidade: um novo paradigma

Somos vítimas de uma inadequação entre o saber e a realidade.
A teologia é chamada a inaugurar “uma nova aliança” com as ciências ditas naturais.
A teologia é chamada a inaugurar “uma nova aliança” com as ciências ditas naturais.
Por Sinivaldo S. Tavares, OFM*
 
Vivemos em uma civilização extremamente complexa. Percebe-se uma interconexão que atravessa a totalidade dos fenômenos. Por esta razão, torna-se cada vez mais difícil captar as questões do “nosso tempo”, que se revelam sempre mais em seu caráter multidimensional, com um saber compartimentado e com uma lógica linear. Somos vítimas de uma inadequação entre o saber e a realidade. E é justamente a formação fragmentada de nossas disciplinas que nos torna cegos às inter-retroações e à causalidade em circuito. À custa de só saber separar, nosso conhecimento disciplinar acaba reduzindo a complexidade da vida e do mundo a fragmentos desconectados.

O “pensar complexo” (E. Morin) – também chamado de “pensar sistêmico” (F. Capra) ou de “ecologia do saber” (B. de Sousa Santos) – põe à mostra, portanto, uma das maiores contradições de nosso saber: a separação dos objetos de seu contexto vital e a separação das disciplinas umas das outras para não ter que relacioná-las. Este novo paradigma salienta, portanto, que a fragmentação das disciplinas é incapaz de compreender “o que está tecido em conjunto”, o que é complexo (com-plexus), segundo a etimologia do termo.

​Todavia, para se compreender bem o diferencial do pensar complexo é preciso concebê-lo como alternativa ao pensar simplificador típico do paradigma contemporâneo vigente. O pensar simplificador se revela, portanto, intrinsecamente excludente no seu modo de conhecer. A conjunção elegida pelo saber simplificador é ouou isso ou aquilo. A rigor, não se trata de uma conjunção, mas, para todos os efeitos, de uma disjunção. O pensar simplificador vê, por exemplo, ou o uno, ou o múltiplo. Ele não percebe que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. Mais ainda: ele não alcança a complexidade da realidade e, portanto, não percebe que só o múltiplo pode se tornar uno, posto que multiplicidade não é desagregação, assim como unidade não é uniformidade. O pensar simplificador ou disciplinar opera ou a disjunção ou a redução. Ou ele separa o que está intrinsecamente ligado (disjunção) ou ele unifica o que é diverso, reduzindo o diferente à monotonia imperativa do mesmo (redução).

O pensar complexo se caracteriza, em primeiro lugar, pelo exercício de uma causalidade em circuito. Ao contrário da lógica linear, onde os termos opostos se anulam, na lógica complexa esses mesmos termos são considerados como dialógicos, posto que, em determinadas situações, eles podem colaborar entre si e produzir organização e complexidade. O princípio dialógico permite que concebamos os pólos opostos e antagônicos como recíprocos e complementares.

O pensar complexo se distingue, ainda, pela assunção da recursividade no processo do conhecimento: os produtos e os efeitos são, ao mesmo tempo, causas e produtores do que os produz. Nós, seres humanos, somos, ao mesmo tempo, produtos e produtores. E isso tanto biológica quanto socialmente. Somos produtores de um processo de reprodução que é anterior a nós. Mas, uma vez, produzidos, nós nos tornamos produtores de um processo que vai continuar. A sociedade é o produto das interações entre pessoas. Mas, uma vez produzida, ela retroage sobre as pessoas e as produz. As pessoas produzem a sociedade que produz as pessoas. Tudo o que é produzido, portanto, volta-se sobre o que o produz numa espécie de ciclo autoconstitutivo, auto-organizador e autoprodutor. Neste sentido, a lógica recursiva constitui uma alternativa à lógica linear do pensar disciplinar: causa-efeito; produto-produtor; estrutura-superestrutura.

O pensar complexo inaugura, ademais, uma peculiar relação entre o todo e as partes: não apenas a parte está no todo, mas também o todo se encontra em cada parte. Em suma, o todo está na parte que está no todo. Cada célula de um organismo vivo contém a totalidade da informação genética deste mesmo organismo. Em âmbito social, também se verifica esta forte presença do todo social sobre cada pessoa através de interdições sociais e de injunções familiares. Todavia, por outro lado, a sociedade é constituída pelas decisões e pelas ações destas mesmas pessoas.

Uma das expressões mais significativas do exercício deste pensar complexo é a eleição de novas metáforas para exprimir a complexidade do real e o caráter processual de sua compreensão. Assim, metáforas como rede, teia, rizoma se revelam como alternativas àquelas outras mais lineares e rígidas, a saber, estrutura, construção, fundamentos, alicerces, bases sólidas. 

O pensar complexo, enfim, coloca uma questão extremamente relevante. Em nossos dias, testemunhamos um fenômeno chamado “neo-cartesianismo high-tech”, no qual o clássico dualismo corpo/alma se manifestaria agora na oposição hardware-software. Situamo-nos no interior das discussões em torno da “inteligência artificial” e seus derivados: processo de upload da mente humana mediante a transmissão de dados do cérebro humano para máquinas, a imortalidade da mente graças à sua hibridação com o software, etc... Discussões essas que se inserem no interessante capítulo da Tecnociência contemporânea, dedicado ao mundo “pós-humano”, “pós-biológico” ou “pós-orgânico”.

Nesse preciso contexto, o pensar complexo salienta o caráter intrinsecamente “orgânico, demasiadamente orgânico” (parafraseando Nietzsche) de nossa vida e de nossos processos cognitivos.  Hans Jonas, por exemplo, propõe uma nova “Biologia filosófica” onde o orgânico prefiguraria o espiritual, já nas suas estruturas inferiores, e o espírito, continuaria a ser parte do orgânico, inclusive nas suas mais altas manifestações. Portanto, a vida e o pensamento somente seriam possíveis no mundo orgânico, enraizados em um corpo vivo. Pois como insiste Francisco Varela: “O cérebro não é um computador”. Segundo esse autor, a organicidade seria um requisito básico para o pensamento e isso com base na própria genealogia do cérebro humano.

O pensar complexo propõe que se reviva aquela originária experiência do conhecer como nascer junto e, portanto, reconhecer as coisas a partir de uma relação constitutiva e vital nossa para com as mesmas. Nessa mesma linha, imprescindível se faz recuperar o verdadeiro sentido da compreensão como articulação entre as várias dimensões que exprimem a complexidade do real: um saber inclusivo tecido ponto por ponto mediante os movimentos recíprocos e complementares da distinção e da conjunção. Importa, enfim, redescobrir o sentido mais originário do pensar como curar. De fato, pensum em latim era uma espécie de ungüento que se colocava sobre a ferida para protegê-la e, ao mesmo tempo, curá-la. Essas ressonâncias etimológicas acenam para a dimensão ética de todo raciocínio e conhecimento humanos. Pensa-se com o intuito e remediar e de curar as feridas abertas de nossa realidade humana, histórica e cósmica.

Em outras palavras, poderíamos falar não mais de um saber como poder, poder este predatório e perverso, mas, agora, nesta nova estação, de um saber cuidar, de um aprender a conviver com as demais criaturas. Trata-se, em suma, de uma autêntica re-significação do poder através do aprender a cuidar. Não mais um saber que oferece a ilusória impressão de gerar certeza e segurança, mas, ao contrário, um saber peculiar que se revela sensível à dinâmica do aprender a lidar com as incertezas e a cuidar de si, dos outros humanos e dos outros seres como maneira singular de conviver e de tutelar a vida.

Tais considerações epistemológicas constituem um grande desafio para a tarefa teológica atual. Sem querer negar os avanços alcançados pela teologia através das “viradas”, antropológica e histórica, que determinaram seu percurso ao longo do século passado, a teologia, hoje, é interpelada a superar de vez todo ranço de antropocentrismo e de historicismo presentes em seu seio. Por isso mesmo, além do diálogo com as ciências humanas, sociais e históricas, a teologia é chamada a inaugurar “uma nova aliança” com as ciências ditas naturais. Isso vai exigir da teologia uma verdadeira metamorfose no sentido de repensar seus próprios fundamentos e seu próprio método. Vem-se falando muito hoje do método transdisciplinar como meio capaz de superar método e lógica extremamente fragmentados das ciências especializadas.

A ousadia em discernir e problematizar com responsabilidade as questões que surgem nas fronteiras do saber não seria um importante e primeiro passo para se predispor a acolher novas possibilidades? Pois como afirma Michel Foucault: “De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição do conhecimento e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para se continuar a olhar ou a refletir”.
*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia

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